sexta-feira, 19 de julho de 2013

Dia do Amigo - Cumplicidade

Cumplicidade

Somos amigas desde bebês, como quando os destinos são traçados na maternidade.
Passamos juntas a infância, a adolescência, dividimos alegrias e tristezas, namoramos muito e nos divertimos à beça. Tudo entre nós acabava em gargalhadas.
Na década de 70, gostávamos de freqüentar barzinhos na Ilha do Governador: atitude não vista com bons olhos pela Tia Juçara, mãe da Mara.
Um sábado estávamos em casa durante uma “fossa” da Mara pelo término de um namorico. Resolvemos sair para bater papo, nos distrairmos. No entanto, como não podíamos dizer à tia que íamos à Ilha, usamos a “mentira cor-de-rosa” ao dizermos que íamos ao teatro.
Fomos para um barzinho, que hoje não existe mais, chamado Geranius. Música ao vivo, ambiente aconchegante, ideal à troca de dores de um amor terminado por alguns olhares.
De repente, adentra ao recinto o cantor Waldick Soriano com seu inseparável chapéu. Notamos sua presença, rimos um pouco, afinal, para nossa geração, ele era considerado um cantor “brega”.  Percebemos que ele me olhava insistentemente, desviamos o olhar e ríamos baixinho da situação. Pouco depois, chega o garçom e me entrega um cartão com o telefone do tal.
Ao chegarmos a casa, contamos o ocorrido para Tia Juçara. Ela, surpresa, nos perguntou onde o tínhamos encontrado. Mantivemos a mentira, afirmando ter sido no teatro. Toda a situação fazia daquela noite memorável: rimos tanto que a “fossa” da Mara esvaiu-se pelo ralo.
Foi então que, no dia seguinte, ao acordarmos, encontramos Tia Margarida, que estava de visita rápida a casa de Mara.
Papo vai, papo vem, contamos o ocorrido e - como mentira tem perna curta - quando Tia Margarida perguntou onde o encontramos, Mara respondeu: No Geranius. Imediatamente me encolhi, já esperando a reação de sua mãe. Rapidamente, Tia Juçara, num tom de voz alto e ameaçador, bradou: “Mara, não foi no teatro que o encontraram? Já não te disse que não quero vocês pelas bandas da Ilha? Duas moças sozinhas naqueles bares...”. Mara, que era rápida no gatilho naquelas situações, afirmou: Mamãe, foi no Gerânius sim, depois falamos sobre isso. Eu, a cada momento me encolhia mais na cadeira, pensando o que iria sair dali. Conversas amenas aconteceram e, tão logo, Tia Margarida foi embora. A pobre ainda não havia chegado ao portão de saída, quando Mara se dirigiu à mãe e disse: “Mamãe, quando eu falar alguma coisa a senhora não me desminta, por favor. Tia Margarida vive me pedindo para levá-la ao teatro. Se eu dissesse a verdade, ela ficaria triste comigo”.  Minha saudosa tia, então, lhe pede desculpas. Naquele momento, eu constatei que minha prima-irmã-amiga tinha o talento nato para ser atriz.
É essa história que conto inúmeras vezes para os jovens, quando falamos sobre a juventude gostosa que vivenciamos.
Hoje, eu e Mara não nos vemos com freqüência, pois a correria da vida não permite o contato no dia a dia, mas nossa amizade foi fortalecida com os laços do afeto, que perduram em nossa memória afetiva com o nome de cumplicidade.

Regina Coeli Carvalho, Julho de 2011
Relatei esse episódio inspirada em uma promoção do Dia do Amigo: “Escreva uma história marcante entre você e um amigo”.
Não participei da promoção ficou somente como registro da memória afetiva.


Recanto das Letras
Regina Coeli Carvalho em 19/07/2013
Código do texto: T4394949
Classificação de conteúdo: seguro


segunda-feira, 15 de julho de 2013

Holocausto Brasileiro


 Neste livro-reportagem fundamental, a premiada jornalista Daniela Arbex resgata do esquecimento um dos capítulos mais macabros da nossa história: a barbárie e a desumanidade praticadas, durante a maior parte do século XX, no maior hospício do Brasil, conhecido por Colônia, situado na cidade mineira de Barbacena. Ao fazê-lo, a autora traz à luz um genocídio cometido, sistematicamente, pelo Estado brasileiro, com a conivência de médicos, funcionários e também da população, pois nenhuma violação dos direitoshumanos mais básicos se sustenta por tanto tempo sem a omissão da sociedade.

Pelo menos 60 mil pessoas morreram entre os muros da Colônia. Em sua maioria, haviam sido internadas à força. Cerca de 70% não tinham diagnóstico de doença mental. Eram epiléticos, alcoólatras, homossexuais, prostitutas, gente que se rebelava ou que se tornara incômoda para alguém com mais poder. Eram meninas grávidas violentadas por seus patrões, esposas confinadas para que o marido pudesse morar com a amante, filhas de fazendeiros que perderam a virgindade antes do casamento, homens e mulheres que haviam extraviado seus documentos. Alguns eram apenas tímidos. Pelo menos 33 eram crianças.

Quando chegavam ao hospício, suas cabeças eram raspadas, suas roupas arrancadas e seus nomes descartados pelos funcionários, que os rebatizavam. Daniela Arbex devolve nome, história e identidade aos pacientes, verdadeiros sobreviventes de um holocausto, como Maria de Jesus, internada porque se sentia triste, ou Antônio Gomes da Silva, sem diagnóstico, que, dos 34 anos de internação, ficou mudo durante 21 anos porque ninguém se lembrou de perguntar se ele falava.

Os pacientes da Colônia às vezes comiam ratos, bebiam água do esgoto ou urina, dormiam sobre capim, eram espancados e violados. Nas noites geladas da Serra da Mantiqueira, eram deixados ao relento, nus ou cobertos apenas por trapos. Pelo menos 30 bebês foram roubados de suas mães. As pacientes conseguiam proteger sua gravidez passando fezes sobre a barriga para não serem tocadas. Mas, logo depois do parto, os bebês eram tirados de seus braços e doados.

Alguns morriam de frio, fome e doença. Morriam também de choque. Às vezes os eletrochoques eram tantos e tão fortes, que a sobrecarga derrubava a rede do município. Nos períodos de maior lotação, 16 pessoas morriam a cada dia. Ao morrer, davam lucro. Entre 1969 e 1980, 1.853 corpos de pacientes do manicômio foram vendidos para 17 faculdades de medicina do país, sem que ninguém questionasse. Quando houve excesso de cadáveres e o mercado encolheu, os corpos foram decompostos em ácido, no pátio da Colônia, diante dos pacientes, para que as ossadas pudessem ser comercializadas. Nada se perdia, exceto a vida.

No início dos anos 60, depois de conhecer a Colônia, o fotógrafo Luiz Alfredo, da revista O Cruzeiro, desabafou com o chefe: “Aquilo é um assassinato em massa”. Em 1979, o psiquiatra italiano Franco Basaglia, pioneiro da luta pelo fim dos manicômios que também visitou a Colônia, declarou numa coletiva de imprensa: “Estive hoje num campo de concentração nazista. Em lugar nenhum do mundo, presenciei uma tragédia como essa”.

 
 Trapos humanos eram abandonados nos leitos sem acesso a remédios
Foto: Luiz Alfredo/ Museu da Loucura – 1961

 Pavilhão onde internos dormiam no "leito único", nome oficial para substituição de camas por capim.
Foto: Luiz Alfredo/ Museu da Loucura – 1961

segunda-feira, 8 de julho de 2013

O andarilho leitor


Ilustração: Homem lendo, André Deymonaz

 
Pela manhã um engarrafamento monstruoso, trânsito desviado, motoristas desavisados, o caos na cidade. O bom humor dá lugar à indignação por tantas obras maquiadas e nenhum respeito pelo povo.
Voltando para casa, agora à noite, encontro o andarilho leitor. Sentado embaixo da banca de jornal aproveitando a iluminação do supermercado com um livro aberto e uma caneta o que sugere que faz marcações durante a leitura.
Em Laranjeiras ele transita sempre arrumadinho com uma mochila, colchonete enrolado, guarda-chuva e sempre acompanhado de um livro.
Desci do carro, dei boa noite e perguntei-lhe que tipo de leitura ele gostava. Com a fala mansa respondeu-me:
-Qualquer uma.
Perguntei seu nome.
-Daniel.
-Eu me chamo Regina e vou trazer uns livros para o senhor.
Um sorriso tímido iluminou seu rosto negro.
Amanhã vou ao seu encontro retribuir o presente que ele me deu.
Sim, voltei para casa com o sentimento de que há esperanças....