sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Parábolas das tristes décadas



Há trinta e cinco anos que vocês nos manipulam,
nos dominam, nos mentem, nos omitem, nos desprezam.

Há trinta e cinco anos que nos roubam,
não só os bens imediatos de que carecemos,
como a esperança que alimenta as almas
e favorece os sonhos.

Há trinta e cinco anos que cometem o pior dos pecados,
aquele que consiste na imolação da nossa vida
em favor da vossa gordura.

Há trinta e cinco anos que traem a Deus e aos homens,
sem que a vossa boca se encha da lama da mentira.

Há trinta e cinco anos que criam legiões e legiões
de desempregados,
de desesperados,
de açoitados pelo azorrague da vossa indignidade.

Há trinta e cinco anos que tripudiam
sobre o que de mais sagrado existe em nós.

Há trinta e cinco anos que embalam as dores
de duas gerações de jovens,
e atiram-nos para as drogas, para o álcool,
para uma existência sem rumo, sem direcção e sem sentido.

Há trinta e cinco anos que caminham,
altaneiros e desprezíveis,
pelo lado oposto ao das coisas justas.

Há trinta e cinco anos que são desonrados,
torpes, vergonhosos e impróprios.

Há trinta e cinco anos que, nas vossas luras e covis,
se acoitam os mais indecentes dos canalhas.

Há trinta e cinco anos que se alternam no mando,
e o mando é a distribuição de benesses,
prebendas, privilégios
entre vocês.

Há trinta e cinco anos que fazem subir as escarpas
da miséria e da fome
milhões de pessoas que em vocês melancolicamente
continuam a acreditar.

Há trinta e cinco anos que se protegem uns aos outros,
que se não incriminam, que se resguardam,
que se enriquecem,
que não permitem que uns e outros sejam presos
por crimes inomináveis.

Há trinta e cinco anos que vocês são sempre os mesmos,
embora com rostos diferentes.

Há trinta e cinco anos que os mesmos jornais,
sendo outros,
e os mesmos jornalistas de outra configuração,
sendo a mesma,
disfarçam as vossas infâmias,
ocultam as vossas ignomínias,
dissimulam a dimensão imensa dos vossos crimes.

Há trinta e cinco anos
sem vergonha,
sem pudor,
sem escrúpulo
e sem remorso.

Há trinta e cinco anos que não estão dispostos
a defender coisa alguma
que concilie o respeito mútuo com a dimensão colectiva.

Há trinta e cinco anos que praticam o desacato moral
contra a grandeza da justiça e a elevação do humano.

Há trinta e cinco anos que, com minúcia e zelo,
construíram um país só para vocês.

Há trinta e cinco anos que moldaram a exclusão social,
que esculpiram as várias faces da miséria e, agora,
sem recato e sem pejo,
um de vocês faz o discurso da indignação.

Há trinta e cinco anos começaram a edificar o medo,
e o medo está em todo o lado:
nas oficinas, nos escritórios,
nos entreolhares, nas frases murmuradas,
na cidade, na rua.
O medo está vigilante.
E está aqui mesmo, ao nosso lado.

Há trinta e cinco anos encenaram e negociaram,
conforme a situação,
o modo de criar novas submissões
e impor o registro das variantes que vos interessavam.

Há trinta e cinco anos engendraram,
sobre as nossas esperanças confusas,
uma outra história natural da pulhice.

Há trinta e cinco anos que traíram os testamentos legados,
que traíram os vossos mortos,
que traíram os vossos mártires.

Há trinta e cinco anos que asfixiam
o pensamento construtivo;
que liquidaram as referências norteadoras;
que escarneceram da nossa pessoal identidade;
que a vossa ascensão não corresponde ao vosso mérito;
que ignoram a conciliação entre semelhança e diferença;
que condenam a norma imperativa do equilíbrio social.

Riam-se, riam-se.
Vocês são uma gente que não presta para nada;
que não vale nada.

Malditos sejam!

Baptista-Bastos, In Jornal de Negócios - Lisboa


*Em homenagem a escolha de Tiririca para integrar a Comissão de Educação e Cultura da Câmara

Um comentário:

Anônimo disse...

Excelente postagem, querida Regina, aliás como todas! Fiquei muito feliz em ver que escolheu um excelente texto de um dos maiores jornalistas e escritores portugueses contemporâneos – Armando Baptista-Bastos - a quem eu considero um dos maiores prosadores portugueses dos nossos dias.
Mais palavras para quê? Estas dizem tudo. Brilhante, B.B. (Baptista Bastos)! Tem toda a razão no que escreve. E este canalha tem um nome, que eu própria ponho aqui e agora: são os políticos e as sanguessugas que vivem dos partidos que estão (vão estando) no poder, seja em que país for. «Há muitos anos que asfixiam o pensamento construtivo! Há muitos anos que não prestam para nada; que não valem nada.»
E, só para que se entenda o texto na sua totalidade: porquê exatamente há 35 anos? Porque, quando B.B. escreveu esse texto, estávamos em 1975: fim da ditadura em Portugal, revolução dos cravos, instauração da democracia, mudanças e sucessivas mudanças a nível governamental… fazia exatamente 35 anos que Portugal assistia a governos que o «desgovernaram»…
BB tem toda a razão, são todos iguais. Mas não tenho dúvidas em afirmar que o que escreveu corresponde ao sentimento generalizado do povo português e não só. E mais não digo, pois para bom entendedor, meia palavra basta! Aplausos, Regina! Adorei! Terno abraço. ANA FERREIRA.