segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Carta de intenções

Vou cuidar da minha vida, que anda meio corrida demais. Vou amar mais meus filhos, porque eles estão crescendo e talvez eu nem os conheça depois – filhos tem o hábito de virar estranhos, da noite para o dia. Vou ouvir mais Chico, Virgínia Rodrigues, Calcanhoto e Cássia – a Eller. Vou ouvir também mais histórias dos velhos e aprender com eles a viver sem tédio ou dor. Vou procurar alguns amigos, declarar amor eterno às coisas de que mais gosto, fazer comida indiana e preparar minha cabeça para o futuro, que já chegou. E você quais são seus planos de vôo?

Lou Bertoni

domingo, 27 de dezembro de 2009

Justiça brasileira!

O presidente do STF, Gilmar Mendes, pretende bater Cesar Cielo em recordes, mas no que tange a julgamentos polêmicos. Depois de arrancar o garoto Sean Goldman de sua família brasileira e entregá-lo não ao pai biológico, mas ao governo dos EUA em troca de concessões comerciais que beneficiam o Brasil, liberta o médico Roger Abdelmassih, suspeito de molestar pacientes em sua clínica. Gilmar será eternizado e lembrado como o ministro do STF que soltou o empresário Daniel Dantas, apoiou a censura contra o “Estadão”, defendeu o senador José Sarney no episódio de funcionários fantasmas etc.

Lauro Fujihara, Carta dos Leitores, O Globo, 25/12/2009

sábado, 26 de dezembro de 2009

Presente da Clara...


Sobre escrever dedicatórias


Havia um plástico a embrulhar o livro

E a etiqueta junto a ele possibilitava a troca.


Havia a dúvida em mim

Sobre rasgar a embalagem

E me rasgar em palavras

Pra lhe rasgar um sorriso.


Foi quando a certeza – como um insight

De que certas palavras deveriam ser suas

As de Benjamim; de Clarice, as minhas

Me fez romper.


Com qualquer idéia que

Permita comparar o livro

A qualquer outro presente.


Um livro não se doa,

Um livro

Se dedica.

Te dedico.


Anna Clara Carvalho

24/12/2009



segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Amigo Secreto

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Aceita um livro?

Vale mais que um trocado

Ambulantes, pedintes e moradores de rua não esperam só por dinheiro dos motoristas parados no sinal vermelho. Sem pagar pra ver, eu vi


“Dinheiro eu não tenho, mas estou aqui com uma caixa cheia de livros. Quer um?" Repeti essa oferta a pedintes, artistas circenses e vendedores ambulantes, pessoas de todas as idades que fazem dos congestionamentos da cidade de São Paulo o cenário de seu ganha-pão. A ideia surgiu de uma combinação com os colegas de NOVA ESCOLA: em vez de dinheiro, eu ofereceria um livro a quem me abordasse - e conferiria as reações.


Para começar, acomodei 45 obras variadas - do clássico Auto da Barca do Inferno, escrito por Gil Vicente, ao infantil divertidíssimo Divina Albertina, da contemporânea Christine Davenier - em uma caixa de papelão no banco do carona de meu Palio preto. Tudo pronto, hora de rodar. Em 13 oferecimentos, nenhuma recusa. E houve gente que pediu mais.

Nas ruas, tem de tudo. Diferentemente do que se pode pensar, a maioria dessas pessoas tem, sim, alguma formação escolar. Uma pesquisa do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, realizada só com moradores de rua e divulgada em 2008, revelou que apenas 15% nunca estudaram. Como 74% afirmam ter sido alfabetizados, não é exagero dizer que as vias públicas são um terreno fértil para a leitura. Notei até certa familiaridade com o tema. No primeiro dia, num cruzamento do Itaim, um bairro nobre, encontrei Vitor*, 20 anos, vendedor de balas. Assim que comecei a falar, ele projetou a cabeça para dentro do veículo e examinou o acervo:


- Tem aí algum do Sidney Sheldon? Era o que eu mais curtia quando estava na cadeia. Foi lá que aprendi a ler.

Na ausência do célebre novelista americano, o critério de seleção se tornou mais simples. Vitor pegou o exemplar mais grosso da caixa e aproveitou para escolher outro - "Esse do castelo, que deve ser de mistério" - para presentear a mulher que o esperava na calçada.


Aos poucos, fui percebendo que o público mais crítico era formado por jovens, como Micaela*, 15 anos. Ela é parte do contingente de 2 mil ambulantes que batem ponto nos semáforos da cidade, de acordo com números da prefeitura de São Paulo. Num domingo, enfrentava com paçocas a 1 real uma concorrência que apinhava todos os cruzamentos da avenida Tiradentes, no centro. Fiz a pergunta de sempre. E ela respondeu:


- Hum, depende do livro. Tem algum de literatura?, provocou, antes de se decidir por Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis.


As crianças faziam festa (um dado vergonhoso: segundo a Prefeitura, ainda existem 1,8 mil delas nas ruas de São Paulo). Por estarem sempre acompanhadas, minha coleção diminuía a cada um desses encontros do acaso. Érico*, 9 anos, chegou com ar desconfiado pelo lado do passageiro:


- Sabe ler?, perguntei.


- Não..., disse ele, enquanto olhava a caixa. Mas, já prevendo o que poderia ganhar, reformulou a resposta:


- Sim. Sei, sim.


- Em que ano você está?


- Na 4ª B. Tio, você pode dar um para mim e outros para meus amigos?, indagou, apontando para um menino e uma menina, que já se aproximavam.


Mas o problema, como canta Paulinho da Viola, é que o sinal ia abrir. O motorista do carro da frente, indiferente à corrida desenfreada do trio, arrancou pela avenida Brasil, levando embora a mercadoria pendurada no retrovisor.


Se no momento das entregas que eu realizava se misturavam humor, drama, aventura e certo suspense, observar a reação das pessoas depois de presenteadas era como reler um livro que fica mais saboroso a cada leitura. Esquina após esquina, o enredo se repetia: enquanto eu esperava o sinal abrir, adultos e crianças, sentados no meio-fio, folheavam páginas. Pareciam se esquecer dos produtos, dos malabares, do dinheiro...


- Ganhar um livro é sempre bem-vindo. A literatura é maravilhosa, explicou, com sensibilidade, um vendedor de raquetes que dão choques em insetos.


Quase chegando ao fim da jornada literária, conheci Maria*. Carregava a pequena Vitória*, 1 ano recém-completado, e cobiçava alguns trocados num canteiro da Zona Norte da cidade. Ganhou um livro infantil e agradeceu. Avancei dois quarteirões e fiz o retorno. Então, a vi novamente. Ela lia para a menininha no colo. Espremi os olhos para tentar ver seu semblante pelo retrovisor. Acho que sorria.


* os nomes foram trocados para preservar os personagens.

Rodrigo Ratier

Fonte: http://revistaescola.abril.uol.com.br/gestao-escolar/diretor/vale-mais-trocado-432764.shtml

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

A M de Lula

Merda dos outros


Maurício Menezes, o craque do humor, adaptou a fala de Lula, já que a merda não é de hoje, para outros presidentes:


Jânio: “Sei que a peble encontra-se envolta em bolo fecal e tirá-la-ei de lá.”


FHC: “As classes menos favorecidas estão submersas numa massa de dejetos.”


Itamar: “O povão tem que sair dessa porcariada.”


Collor: “Meu povo, mergulharei nesse mar para resgatar um a um.”


Sarney: “Merdeiros e merdeiras.”


Figueiredo: “Prefiro o cocô do cavalo.”


Fonte: Gente Boa, Joaquim Ferreira dos Santos, Jornal O Globo, 13/13/2009

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Lá...

- Nunca lá chegarei, professor.

- Que dizes?

- Nunca lá chegarei!

- Aonde queres ir?

- A lado nenhum! Não quero ir a lado nenhum!

- Então porque tens medo de não lá chegar?

- Não é o que quero dizer!

- Que queres dizer?

- Nunca lá chegarei é tudo!

- Escreve no quadro: nunca lá chegarei.

Nunca laxegarei.

- Enganaste-te. Esqueceste-te do advérbio de lugar "lá". Explicar-te-ei mais tarde os advérbios. E o verbo é o verbo chegar, com "ch". Corrige.

Nunca lá chegarei.

- Está bem. Que indica esse "lá", na tua opinião?

- Não sei.

- Que significa?

- Não sei.

- Pois bem, temos mesmo de descobrir o que significa, porque é dele que tens medo, desse "lá".

Daniel Pennac, In "Mágoas na Escola"

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Dia mundial de combate à AIDS


Recicle idéias, jogue fora preconceitos.

Informações aqui

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Peso do nada


"Sou formada por ausências,
Solitude, abstinências,
Que muitas vezes esmagam
Os gritos do meu silêncio!

Sou feita de mil querenças,

Anseios e transparências,

Que muitas vezes emergem

Com a voragem de um tufão!

Sou fruta verde-madura,

Um travo de fel-doçura,

Aguardente que se traga!

Sigo cerzindo essa teia,

Segurando em minhas veias

Todo o peso deste nada!"

Eliane Stoducto

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Pessoas...

Foto: Anna Clara Carvalho


Há pessoas que são como instituições.
Quando, de repente nos damos conta,
já levamos a multa para casa
com pagamento obrigatório
dali a dez dias.
Há pessoas com cara de guiché,
ar de recibo verde e
voz com tom de carimbo.
Há pessoas que são como eléctricos
e, quando damos por isso,
já elas correm sempre em frente
nos seus carris de todos os dias.
Há pessoas que são como barris de vinho;
não têm furos, não deixam escapar nada
e quando, num ápice, deixamos escapar um sorriso,
já elas estão cilindradas por medos e fobias,
que por muito que tentemos não conseguimos
descobrir quais são.
Há pessoas que trazem nos dentes impressos
como autocolantes senhas numeradas para
manter ordens que, mesmo desordenadas,
devem apitar no ecrã e parecer muito direitas.
Há pessoas que nos levam da vida como uma onda,
que vem só às vezes; pessoas que se deixam
embrulhar em laços e parecem
nunca mais querer endireitar-se.
Há pessoas que são como balcões
encerrados para balanço,
que cegam como nós dados nos
cordões dos sapatos,
que ardem como sumo de limão nos lábios
e que se evaporam como o fumo de um chá quente.
Há pessoas que lembram ovos cozidos e outras
que lembram músicas e letras.
Há pessoas que usam chapéus de palha
e soltam gargalhadas como se fossem
de rir as outras pessoas.
Há pessoas que são como feiras de carros usados;
pessoas que parecem de colar;
pessoas que lembram filetes de pescada
deitados em travessas de inox;
pessoas que são de decalcar.
Há pessoas que são tantas pessoas
que todas juntas parecem uma pessoa só.
Maria Amaro



sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Fluminense Poético....



Vídeo daqui: Capital Tricolor



quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Sótão

Foto: Anna Clara Carvalho


Por interstícios das malas abertas de quando éramos
crianças gritam as bocas sem nenhum eco
das bonecas.

Criaturas fictícias, escalpelizadas
e sem tintas, de ventre oco.

Mas o mortal lugar do coração está ainda a palpitar.
O bojo do peito de celulóide, como o meu,
pede-nos perdão pela saudade que nos devora.
Fiama Hassa Pais Brandão, In Cena Vivas

terça-feira, 3 de novembro de 2009

A intolerância de minissaia


(...) Para quem ainda não soube pela TV ou pela Internet, eis os fatos. No dia 22, uma estudante do curso de Turismo da Uniban, no campus de São Bernardo do Campos, foi à aula com um vestido curto cor-de-rosa, saltos altos e maquiagem. Ela sairia da aula para uma festa. Acabou sendo escoltada pela polícia para não ser linchada.

Não, falar em linchamento não é exagero. Faltou pouco – se houvesse pedras por ali...As imagens são impressionantes. “Puta, puta”, gritava uma multidão de pelo menos 300 pessoas, as vozes ecoando por todo o prédio. Ela teve de suportar ainda cusparadas, ameaças de estupro, tentativas de lhe fotografar os fundilhos. O vídeo foi parar no You Tube. No dia 29, chegou ao noticiário.

O episódio é revelador. Mostra o grau de barbárie e intolerância que se esconde sob o manto da falsa moralidade e da inveja., indica a qualidade da educação que estudantes universitários recebem e receberam na sala de aula e também em casa. Falta moral e ética. Aconteceu numa universidade. Não dá para usar a desculpa da ignorância. É a pura incapacidade de aceitar o diferente.

Da próxima vez que você reclamar da política, lembre que esse é o povo que elege nossos representantes. Se foram capazes de fazer isso, o que não fariam se tivessem poder? Esses são os futuros profissionais com os quais você terá de lidar. Se agiram assim em público, o que não fariam quando ninguém estivesse olhando? Moral e ética não são opcionais. Se o sujeito não tem numa circunstância, não vai ter em outra também.

Ah, mas a roupa dela era inapropriada, disseram alguns, inclusive professores. E daí? Ela não estava fazendo nada de ilegal. Não gostou? Fala com a própria menina, reclama com o reitor. Se não acontecer nada, fique no seu canto e cuide de sua vida. Simples assim. A isso se chama tolerância.

Fábio Santos, Jornal Rio Destak, edição nº 315, 3 de novembro de 2009.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Carta aos Mortos


Amigos, nada mudou em essência.
Os salários mal dão para os gastos,
As guerras não terminaram
E há vírus novos e terríveis,
Embora o avanço da medicina.
Volta e meia um vizinho
Tomba morto por questões de amor.
Há filmes interessantes, é verdade,
E como sempre, mulheres portentosas
Nos seduzem com suas bocas e pernas,
Mas em matéria de amor
Não inventamos nenhuma posição nova.
Alguns cosmonautas ficam no espaço
Seis meses ou mais, testando a engrenagem
E a solidão.
Em olimpíada há recordes previstos
E nos países, avanços e recuos sociais.
Mas nenhum pássaro mudou seu canto
Com a modernidade.
Reencenamos as mesmas tragédias gregas,
Relemos o Quixote, e a primavera
Chega pontualmente cada ano.
Alguns hábitos, rios e florestas
Se perderam.
Ninguém mais coloca cadeiras na calçada
Ou toma a fresca da tarde,
Mas temos máquinas velocíssimas
Que nos dispensam de pensar.
Sobre o desaparecimento dos dinossauros
E a formação das galáxias
Não avançamos nada.
Roupas vão e voltam com as modas.
Governos fortes caem, outros se levantam,
Países se dividem
E as formigas e abelhas continuam
Fiéis ao seu trabalho.
Nada mudou em essência.
Cantamos parabéns nas festas,
Discutimos futebol na esquina
Morremos em estúpidos desastres
E volta e meia
Um de nós olha o céu quando estrelado
Com o mesmo pasmo das cavernas.
E cada geração, insolente,
Continua a achar
Que vive no ápice da história.

Affonso Romano de Sant'Anna

sábado, 31 de outubro de 2009

Ao Escrever...


Ao escrever a fome

com as palmas das mãos vazias

quando o buraco-estômago

expele famélicos desejos

há neste demente movimento

o sonho-esperança

de alguma migalha alimento.


Ao escrever o frio

com a ponta de meus ossos

e tendo no corpo o tremor

da dor e do desabrigo,

há neste tenso movimento

o calor-esperança

de alguma mísera veste.


Ao escrever a dor,

sozinha,

buscando a ressonância

do outro em mim

há neste constante movimento

a ilusão-esperança

da dupla sonância nossa.


Ao escrever a vida

no tubo de ensaio da partida

esmaecida nadando,

há neste inútil movimento

a enganosa-esperança

de laçar o tempo

e afagar o eterno.


Conceição Evaristo

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

O Verbo For


Vestibular de verdade era no meu tempo. Já estou chegando, ou já cheguei, à altura da vida em que tudo de bom era no meu tempo; meu e dos outros coroas. Acho inadmissível e mesmo chocante (no sentido antigo) um coroa não ser reacionário. Somos uma força histórica de grande valor. Se não agíssemos com o vigor necessário — evidentemente o condizente com a nossa condição provecta —, tudo sairia fora de controle, mais do que já está. O vestibular, é claro, jamais voltará ao que era outrora e talvez até desapareça, mas julgo necessário falar do antigo às novas gerações e lembrá-lo às minhas coevas (ao dicionário outra vez; domingo, dia de exercício).


O vestibular de Direito a que me submeti, na velha Faculdade de Direito da Bahia, tinha só quatro matérias: português, latim, francês ou inglês e sociologia, sendo que esta não constava dos currículos do curso secundário e a gente tinha que se virar por fora. Nada de cruzinhas, múltipla escolha ou matérias que não interessassem diretamente à carreira. Tudo escrito tão ruybarbosianamente quanto possível, com citações decoradas, preferivelmente. Os textos em latim eram As Catilinárias ou a Eneida, dos quais até hoje sei o comecinho.


Havia provas escritas e orais. A escrita já dava nervosismo, da oral muitos nunca se recuperaram inteiramente, pela vida afora. Tirava-se o ponto (sorteava-se o assunto) e partia-se para o martírio, insuperável por qualquer esporte radical desta juventude de hoje. A oral de latim era particularmente espetacular, porque se juntava uma multidão, para assistir à performance do saudoso mestre de Direito Romano Evandro Baltazar de Silveira. Franzino, sempre de colete e olhar vulpino (dicionário, dicionário), o mestre não perdoava.


— Traduza aí quousque tandem, Catilina, patientia nostra — dizia ele ao entanguido vestibulando.
— "Catilina, quanta paciência tens?" — retrucava o infeliz.


Era o bastante para o mestre se levantar, pôr as mãos sobre o estômago, olhar para a platéia como quem pede solidariedade e dar uma carreirinha em direção à porta da sala.


— Ai, minha barriga! — exclamava ele. — Deus, oh Deus, que fiz eu para ouvir tamanha asnice? Que pecados cometi, que ofensas Vos dirigi? Salvai essa alma de alimária. Senhor meu Pai!


Pode-se imaginar o resto do exame. Um amigo meu, que por sinal passou, chegou a enfiar, sem sentir, as unhas nas palmas das mãos, quando o mestre sentiu duas dores de barriga seguidas, na sua prova oral. Comigo, a coisa foi um pouco melhor, eu falava um latinzinho e ele me deu seis, nota do mais alto coturno em seu elenco.


O maior público das provas orais era o que já tinha ouvido falar alguma coisa do candidato e vinha vê-lo "dar um show". Eu dei show de português e inglês. O de português até que foi moleza, em certo sentido. O professor José Lima, de pé e tomando um cafezinho, me dirigiu as seguintes palavras aladas:


— Dou-lhe dez, se o senhor me disser qual é o sujeito da primeira oração do Hino Nacional!


— As margens plácidas — respondi instantaneamente e o mestre quase deixa cair a xícara.


— Por que não é indeterminado, "ouviram, etc."?


— Porque o "as" de "as margens plácidas" não é craseado. Quem ouviu foram as margens plácidas. É uma anástrofe, entre as muitas que existem no hino. "Nem teme quem te adora a própria morte": sujeito: "quem te adora." Se pusermos na ordem direta...


— Chega! — berrou ele. — Dez! Vá para a glória! A Bahia será sempre a Bahia!


Quis o irônico destino, uns anos mais tarde, que eu fosse professor da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia e me designassem para a banca de português, com prova oral e tudo. Eu tinha fama de professor carrasco, que até hoje considero injustíssima, e ficava muito incomodado com aqueles rapazes e moças pálidos e trêmulos diante de mim. Uma bela vez, chegou um sem o menor sinal de nervosismo, muito elegante, paletó, gravata e abotoaduras vistosas. A prova oral era bestíssima. Mandava-se o candidato ler umas dez linhas em voz alta (sim, porque alguns não sabiam ler) e depois se perguntava o que queria dizer uma palavra trivial ou outra, qual era o plural de outra e assim por diante. Esse mal sabia ler, mas não perdia a pose. Não acertou a responder nada. Então, eu, carrasco fictício, peguei no texto uma frase em que a palavra "for" tanto podia ser do verbo "ser" quanto do verbo "ir". Pronto, pensei. Se ele distinguir qual é o verbo, considero-o um gênio, dou quatro, ele passa e seja o que Deus quiser.


— Esse "for" aí, que verbo é esse?


Ele considerou a frase longamente, como se eu estivesse pedindo que resolvesse a quadratura do círculo, depois ajeitou as abotoaduras e me encarou sorridente.


— Verbo for.


— Verbo o quê?


— Verbo for.


— Conjugue aí o presente do indicativo desse verbo.


— Eu fonho, tu fões, ele fõe - recitou ele, impávido. — Nós fomos, vós fondes, eles fõem.


Não, dessa vez ele não passou. Mas, se perseverou, deve ter acabado passando e hoje há de estar num posto qualquer do Ministério da Administração ou na equipe econômica, ou ainda aposentado como marajá, ou as três coisas. Vestibular, no meu tempo, era muito mais divertido do que hoje e, nos dias que correm, devidamente diplomado, ele deve estar fondo para quebrar. Fões tu? Com quase toda a certeza, não. Eu tampouco fonho. Mas ele fõe.


João Ubaldo Ribeiro, In O Conselheiro Come.