As mulheres aspiram a casa para dentro dos pulmões
As mulheres aspiram a casa para dentro dos pulmões
E muitas transformam-se em árvores cheias de ninhos - digo,
As mulheres - ainda que as casas apresentem os telhados inclinados
Ao peso dos pássaros que se abrigam.
É à janela dos filhos que as mulheres respiram
Sentadas nos degraus olhando para eles e muitas
Transformam-se em escadas
Muitas mulheres transformam-se em paisagens
Em árvores cheias de crianças trepando que se penduram
Nos ramos - no pescoço das mães - ainda que as árvores irradiem
Cheias de rebentos
As mulheres aspiram para dentro
E geram continuamente. Transformam-se em pomares.
Elas arrumam a casa
Elas põem a mesa
Ao redor do coração.
Daniel Faria, InHomens Que São Como Lugares Mal Situados (1998)
Sei que as pessoas estão pulando na jugular uma das outras.
Sei que viver está cada vez mais dificultoso.
Mas talvez por isso mesmo ou, talvez, devido a esse maio azulzinho, a esse outono fora e dentro de mim, o fato é que o tema da delicadeza começou a se infiltrar, digamos, delicadamente nesta crônica, varando os tiroteios, os seqüestros, as palavras ásperas e os gestos grosseiros que ocorrem nas esquinas da televisão e do cinema com a vida.
Talvez devesse lançar um manifesto pela delicadeza. Drummond dizia: "Sejamos pornográficos, docemente pornográficos". Parece que aceitaram exageradamente seu convite, e a coisa acabou em "grosseiramente pornográficos". Por isso, é necessário reverter poeticamente a situação e com Vinícius de Morais ou Rubem Braga dizer em tom de elegia ipanemense:
Já a delicadeza guerrilheira de Guevara era, convenhamos, discutível. Mas mesmo ele, que andou fuzilando pessoas por aí, também andou dizendo: "Endurecer, sem jamais perder a ternura".
Essa é a contradição do ser humano. Vejam o nosso sedutor e exemplar Vinícius, que há 20 anos nos deixou, delicadamente.
Era um profissional da delicadeza. Naquela sua pungente "Elegia ao primeiro amigo" nos dizia:
Mato com delicadeza. Faço chorar delicadamente.
E me deleito. Inventei o carinho dos pés; minha alma
Áspera de menino de ilha pousa com delicadeza sobre um corpo de adúltera.
Na verdade, sou um homem de muitas mulheres, e com todas delicado e atento.
Se me entediam, abandono-as delicadamente, despreendendo-me delas com uma doçura de água.
Se as quero, sou delicadíssimo; tudo em mim
Desprende esse fluido que as envolve de maneira irremissível
Sou um meigo energúmeno. Até hoje só bati numa mulher
Mas com singular delicadeza. Não sou bom
Nem mau: sou delicado. Preciso ser delicado
Porque dentro de mim mora um ser feroz e fratricida
Como um lobo.
Esta aí: porque somos ferozes precisamos ser delicados. Os que não puderem ser puramente delicados, que o sejam ferozmente delicados.
Houve um tempo em que se era delicado. E Rimbaud, que aos 17 anos já tinha feito sua obra poética, é quem disse um dia: "Por delicadeza, eu perdi minha vida."
Intrigante isso.
Há pessoas que perdem lugar na fila, por delicadeza. Outras, até o emprego. Há as que perdem o amor por amorosa delicadeza. Sim, há casos de pessoas que até perderam a vida, por pura delicadeza. Não é certamente o caso de Rimbaud, que se meteu em crimes e contrabandos na África. O que ele perdeu foi a poesia. E isso é igualmente grave.
Confesso que buscando programas de televisão para escapar da opressão cotidiana, volta e meia acabo dando em filmes ingleses do século passado. Mais que as verdes paisagens, que o elegante guarda-roupa, fico ali é escutando palavras educadíssimas e gestos elegantemente nobres. Não é que entre as personagens não haja as pérfidas, as perversas. Mas os ingleses têm uma maneira tão suave, tão fina de serem cruéis, que parece um privilégio sofrer nas mãos deles.
Tudo é questão de estilo.
Aquele detestável Bukovski, sendo abominável, no entanto, num poema delicado dizia que gostava dos gatos, porque os gatos tinham estilo. É isso. É necessário, com certa presteza, recuperar o estilo felino da delicadeza.
A delicadeza não é só uma categoria ética. Alguém deveria lançar um manifesto apregoando que a delicadeza é uma categoria estética.
Ah, quem nos dera a delicadeza pueril de algumas árias de Mozart. A delicadeza luminosa dos quadros dos pintores flamengos, de um Vermeer, por exemplo. A delicadeza repousante das garrafas nas naturezas mortas de Morandi. Na verdade, carecemos da delicadeza dos adágios.
Vivemos numa época em que nos filmes americanos os amantes se amam violentamente, e em vez de sussurrarem "I love you" arremetem um virótico "Fuck you".
Sei que alguém vai dizer que com delicadeza não se tira um MST - com sua foice e fúria - dos prédios ocupados. Mas quem poderá negar que o poder tem sido igualmente indelicado com os pobres deste país há 500 anos?
Penso nos grandes delicados da história. Deveriam começar a fazer filmes, encenar peças sobre os memoráveis delicados. Vejam o Marechal Rondon. Militar e, no entanto, como se fora um místico oriental, cunhou aquela expressão que pautou seu contato com os índios brasileiros: "Morrer se preciso for, matar nunca".
A historiadora Denise Bernuzzi de Sant'Anna anda fazendo entre nós o elogio da lentidão, denunciando a ferocidade da cultura da velocidade. É bom pensar nisso. Pela pressa de viver as pessoas estão esquecendo de viver. Estão todos apressadíssimos indo a lugar nenhum.
Curioso. A delicadeza tem a ver com a lentidão. A violência tem a ver com a velocidade. E outro dia topei com um livro, A descoberta da lentidão, no qual Sten Nadolny faz a biografia do navegador John Franklin, que vivia pesquisando o Pólo Norte. Era lento em aprender as coisas na escola, mas quando aprendia algo o fazia com mais profundidade que os demais.
Sei que vão dizer: "A burocracia, o trânsito, os salários, a polícia, as injustiças, a corrupção e o governo não nos deixam ser delicados."
- E eu não sei?
Mas de novo vos digo: sejamos delicados. E, se necessário for, cruelmente delicados.
Affonso Romano de Sant'Anna, In Tempo de delicadeza
Símbolo da magia – toda bruxa tem um gato, preferivelmente negro.
Símbolo daquilo que fascina e atrai. Um homem bonito, amado pelas mulheres, é um
“gato”. Uma mulher bonita, amada pelos homens, é uma “gata”.
Os gatos como todos os felinos são caçadores.
Gatos caçam peixes, ratos e pássaros.
Um peixinho bobo, na superfície do tanque,
um passarinho distraído, comendo quirera,
um ratinho molenga, passeando pela casa,
e era uma vez um peixinho, um passarinho e um ratinho...Viraram comida
de um gato.
Assim, são os gatos, caçadores carnívoros. Eles desprezam os coelhos – animais do mesmo tamanho, só que nem são caçadores, nem carnívoros. Coelhos comem cenouras. Os gatos odeiam cenouras. Para os gatos, quem como cenoura é ruim da cabeça. Os coelhos devem ser doidos....”
Rubem Alves, In O gato que gostava de cenoura.
Sou admiradora da obra do Rubem Alves e este livro infantil encantou-me pela sensibilidade e poética com que trata de uma questão tão sensível, as diferenças na sexualidade.
Obra que deve fazer parte de toda biblioteca infantil.
Uma retificação, meu bom Vinícius:
Você falou em "bares repletos de homens vazios"
e no entanto se esqueceu
de que há bares
lares
teatros, oficinas
aviões, chiqueiros
e sentinas,
cheinhos(ao contrário)
de homens cheios
Homens cheios.
(e você bem sabe)
entulhados da primeira à última geração
da imoralidade desta vida
das cotidianas encruzilhadas e decepções
da patente inconsequência disso tudo.
Você se esqueceu
Vinícius, meu bom,
dos bares que estão repletos de homens cheios
da maldade das coisas e dos fatos,
dos bares que estão cheios de homens cheios
da maldade insaciável
dos que fazem as coisas
e organizam os fatos
E você
que os conhece tão de perto
Vinícius "Felicidade" de Moraes
não tinha o direito de esquecer
essa parcela imensa de homens tristes,
condenados candidatos naturais
a títulos de tão alta racionalidade
a deboches de tão falsa humanidade.
Recebi de volta um livro que estava emprestado há anos: Cadernos de João.
Estou relendo-o e redescobrindo-o.
Homem em preparativos
Ando sempre em preparativos.
Acumulo material, encomendo peças. Junto o necessário. Tomo todas as providências. E trato também da ornamentação.
Com isso, vou-me distraindo. Troco coisas e idéias. Alguns me ajudam,
servem-se também de mim. E todos assim nos distraímos nesses preparativos.
Mas com que seriedade! Com que paixão!
Nos momentos de intervalo, construímos cidade, casamos, discutimos,
entramos na guerra.
Preparamo-nos todos para qualquer coisa que ainda não aconteceu. Há
dezenas de anos tem sido assim, Há milhares de anos...
adoro os detalhes que aliviam o peso do conjunto. O que me atrapalha, porém, não é tanto o tempo perdido na escolha do material – isso até me preenche as horas – o que me atrapalha é a rapidez com que as coisas se deterioram.
Às vezes recebo intimações para acabar depressa. Mas desconfio e faço cera. Acabar depressa, o quê?
Saio então a ver se encontro qualquer coisa que seja bem difícil de achar – acontecimento ou mulher.
Meu medo é a interrupção dessa busca por colapso de entusiasmo ou pela aparição fácil do objeto.
Procuro sempre...Procuro sem remitência. Invento novas dificuldades.
Adoro os obstáculos...
Vivo assim amontoando, renovando, corrigindo, experimentando, caindo e me aprumando.
Assim não chegará jamais o dia da minha inauguração. Pois o meu pavor é a viagem concluída, a coisa acabada...
O meu pavor é a estátua de pedra, o feixe de ossos gelando na chuva ou debaixo da terra.
....enquanto vocês aí fora continuam procurando, procurando...
Nem tudo na vida são flores, Dolores
como na vida, nem tudo são dores
Dolores da vida, em cada esquina
a nos espreitar
Dolores do mundo,
a cada segundo
o peito a sangrar
Dolores sofridas,
ao longo da vida
nos fazem chorar
Dolores que nascem
Dolores que morrem
Dolores mutantes
Dolores gestantes
Dolores do parto
Dolores que partem,
deixando ficar
junto com as marcas,
espinhos, Dolores
e um ramo de flores
jasmim, margarida
ou um simples miosótis
como a nos dizer:
"forget-me-not"
Nem tudo na vida são dores, Dolores
como na vida, nem tudo são flores...
Eliane Stoducto
As flores são pra você que deixou o Rio com dores......
O dia 18 de maio é marcado como o Dia Nacional da Luta Antimanicomial. Em 2009, esta luta, iniciada no II Congresso Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental, completa 22 anos.
Naquele momento, os profissionais recusaram o papel de agentes da exclusão e da violência institucionalizadas, que desrespeitam os mínimos direitos da pessoa humana, e inauguraram um novo compromisso em busca de uma Reforma do modelos, das práticas e da política de atenção à saúde mental no país. A causa se tornou eixo de um amplo movimento social. Como um de seus resultados, temos hoje a definição legal da Reforma Psiquiátrica, ainda em fase de implementação.
Diversas atividades serão promovidas pelos Conselhos Regionais e por núcleos do Movimento Antimanicomial para marcar a data, sensibilizar a cultura pela causa antimanicomial, assim como para buscar os avanços necessários à implementação de um modelo de atenção efetivamente antimanicomial. No campo da Psicologia, queremos ainda marcar a posição da profissão diante da questão dos princípios orientadores da atenção à saúde mental no país.
O movimento de luta antimanicomial considera que a loucura pode e deve ter o seu lugar no mundo, que as subjetividades individuais contribuem na construção do todo social e que a aceitação das diferenças, sejam elas quais forem, faz parte do ideal de democracia da nossa sociedade.
Também já se constatou que não há mais espaço para instituições de cuidado focadas no isolamento, pois se sabe que o convívio comunitário e a interação social são fundamentais para todos os seres humanos. Para garantir saúde mental, é preciso garantir o protagonismo social e a condição de cidadania daqueles que trazem como questão o sofrimento psíquico.
A luta antimanicomial, fundamentada no oferecimento de direitos de cidadania e de convivência social aos portadores de transtornos mentais, é um desafio epistemológico para as ciências da saúde (e outras que queiram a elas se aliar).
"Quando propomos o fim dos manicômios não é apenas um fim de um prédio, dos muros. É o fim desse olhar, dessas relações que não permitem a diferença. Ninguém escolhe ficar louco"Alessandro de Oliveira Campos