segunda-feira, 30 de julho de 2012

Cartas de amor de Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz


19-6-1920

Meu Bebé pequenino:

Ainda talvez podia ir esperar-te lá acima, mas não me disseste onde, nem me dás a certeza das horas. Não quis telefonar-te por duas razões — a primeira porque é desagradável telefonar assim, mesmo dando um «recado» fingido, para uma casa onde é o teu primeiro dia; depois porque não tenho telefone, de onde fale sem me ouvirem, e não quero falar-te de modo que outros ouçam. Os três telefones, onde às vezes falo, são, um no Café Arcada, e aí falar é falar em público; outro, na Papelaria Vieira, que está nas mesmas condições; o terceiro num escritório onde vou e esse telefone é no meio do quarto principal, onde estão os empregados.
Aguardo, pois, combinação melhor e ocasião propícia para te falar e ir esperar para os lados da Av. Almirante Reis.
A empresa continua em organização. Eu estou mal de saúde e de nervos, mas isso não tem importância. Mal tenho tempo para escrever.
Amanhã passo na tua rua, vindo da Baixa, e portanto do lado do Conde Barão, entre o meio-dia e meia hora e a uma hora.
Adeus, minha Íbis. Além de tudo estou muito cansado.
Muitos beijos do teu, muito teu

Fernando

In, Cartas de Amor de Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz

sábado, 28 de julho de 2012

Nise da Silveira


Nise da Silveira

Nise gigante de metrimeio. Nise tinhosa, valente, aguda. Nise terna. Nise felina, arquetípica: “Grande Mãe” com alma de “Puer Aeternus”. Nise memória do cárcere que libertou das ditaduras da psiquiatria tradicional. Nise da aventura maravilhosa de curar.
Nise que foi: mais cáctus que manga; mais mel que coca-cola; mais verdade que vacilação; mais queijo de coalho que cammembert; mais Beethoven que Chopin; mais Chaplin que Cecil B. de Mille; mais pífano que harpa; mais franqueza que medo; mais humildade que modéstia.
Nise concreta, Nise brava e forte na fragilidade maior da feminilidade imponente.
Nise mandacaru sempre florido por agudeza e percuciência, expressão estética da ética maior do ser tornado igual.
Nise alma de santa em estilo guerreiro, mescla de forças abissais com sutilezas orientais.
Nise hostil às formas de poder não oriundos do saber. Nise sacerdotisa dos gatos com quem aprendemos a sabedoria milenar do instinto e a rara civilização do sutil. Nise dos cães, seus terapeutas que ajudaram esquizofrênicos a se manifestar e a trazerem de seu pulcro mundo ocultos, tanto belezas quanto a possibilidade de alcançar universos que os chamados sadios jamais vislumbrarão.
Nise exação em pessoa como servidora pública exemplar; para quem servir era o único escopo da atividade.
Nise terapeuta ágil, leal e profunda a encadear nas imagens do inconsciente as descobertas de eras imemoriais e do patrimônio comum à humanidade. Nise do inconsciente coletivo, do self anima casado com animus, velho sábio amigo do herói, memória da célula.
Nise da arqueologia da mente e dos elos cósmicos além dos racionalismos que infelicitaram o século XX. Nise veraz, luz, claridade, franqueza, ordem direta, o fim da evasiva, o começo da verdade, a verdade final, afinal a verdade. Nise intrépida, retilínea, indômita e audaz. Exemplo de vida!
 Nise mãe geral de um Brasil menino e enfermo, pobre e desvalido. Obreira da grandeza civil, desbravadora dos continentes internos, antropóloga das profundezas. Nise asceta, seiva viva, anciã de todas as juventudes, jovem de todas as eras.
Nise pássaro, graúna azul, olhar raio x, aguda percepção da falsidade alheia tanto quanto da verdade e do bem igualmente moradores na alma do ser. Nise áspera se necessária e seixo de rio sempre que encontrava alma irmã.
Nise Brasil, Nise elo de gerações, marca da capacidade humana de ser, crescer, criar, ousar, aventurar-se no caminho maior da entrega da vida ao bem da humanidade.

Artur da Távola, Revista Quaternio - Nº 8, 2001 - Grupo de Estudo C. G. Jung.

*Artur da Távola foi Presidente da Casa das Palmeiras  de  novembro de 2005 a dezembro de 2007.

A Casa das Palmeiras é uma Instituição de reabilitação psiquiátrica com Terapia Ocupacional, Emoção de Lidar, em regime aberto, idealizada por Nise da Silveira, fundada por ela com a colaboração da psiquiatra Maria Stela Braga, da artista plástica Belah Paes Leme, da assistente social Ligia Loureiro e da educadora Alzira Lopes Cortes, na presença de muitos amigos, num domingo à tarde, dia 23 de dezembro de 1956.
A Casa das Palmeiras não segue padrões convencionais de reabilitação. É um pequeno território de relações humanas afetivas e de atividades criadoras onde os clientes têm a oportunidade de, espontaneamente, realizarem seus trabalhos expressivos lhes facilitando a entrada em contato com a vida. Os trabalhos são assinados, datados e arquivados para serem estudados em série. Método inspirado na prática terapêutica ocupacional a partir da observação com os próprios clientes e enriquecidos com a Psicologia Analítica de C. G. Jung.
A Casa das Palmeiras é pioneira na América Latina e inovadora na história da moderna psiquiatria.
Rua Sorocaba 800, Botafogo, Rio de Janeiro, Brasil.
http://casadaspalmeiras.blogspot.com.br/

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Conselhos de José Saramago


Regressados de uma viagem à Argentina e Bolívia, os meus cunhados María e Javier trazem-me o jornal Clarín de 30 de Agosto. Aí vem a notícia de que vai ser apresentada ao Parlamento peruano uma nova lei de turismo que contempla a possibilidade de entregar a exploração de zonas arqueológicas importantes, como Machu Picchu e a cidadela pré-incaica de Chan-Chan, a empresas privadas, mediante concurso internacional.  Clarin chama a isto “la loca carrera privatista de Fujimori”. O autor da proposta de lei é um tal Ricardo Marcenaro, presidente da Comissão de Turismo e telecomunicações e Infra-Estrutura do Congresso peruano, que alega o seguinte, sem precisar da tradução: ” En vista de que el Estado no ha administrado bien nuestras zonas arqueológicas – qué pasaría si las otorgaramos a empresas especializadas en otros países con gran efectividad?”.
A mim parece-me bem. Privatize-se Machu Picchu, privatize-se Chan Chan, privatize-se a Capela Sistina, privatize-se o Pártenon, privatize-se o Nuno Gonçalves, privatize-se a Catedral de Chartres, privatize-se o Descimento da Cruz, de Antonio da Crestalcore, privatize-se o Pórtico da Glória de Santiago de Compostela, privatize-se a Cordilheira dos Andes, privatize-se tudo, privatize-se o mar e o céu, privatize-se a água e o ar, privatize-se a justiça e a lei, privatize-se a nuvem que passa, privatize-se o sonho, sobretudo se for diurno e de olhos abertos. E, finalmente, para florão e remate de tanto privatizar, privatizem-se os Estados, entregue-se por uma vez a exploração deles a empresas privadas, mediante concurso internacional. Aí se encontra a salvação do mundo… E, já agora, privatize-se também a puta que os pariu a todos.
José Saramago, Cadernos de Lanzarote – Diário III

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Só por hoje....


Só por hoje

Só por hoje
vou rasgar os códigos.
Desacatar as regras,
a água morna,
os preços módicos.
Só por hoje
desacredito das retas,
descarrilho do trilho,
desvio das setas.

Preciso de tempo pra sonhar,
respirar fundo e carregar na mão
o sal da vida e o mel do mundo.

Se o compromisso tocar a campainha,
peço que aguarde na casa vizinha,
mansamente, sem fazer alarde.
Mas comunico a todos pela imprensa
que sumiu a lucidez.
Pediu licença.
É só por hoje,
mas agora é minha vez.
Flora Figueiredo

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Para que serve a Guarda Municipal?


Quando eu era criança existia uma dupla de policiais chamados de “Cosme e Damião” que faziam rondas pelas ruas da cidade.
O tempo passou, o mundo evoluiu(?), hoje temos o quarteto da guarda municipal.
Na semana passada 4 mocinhas admiravam a vitrine de uma loja de calçados pela parte de dentro da galeria no Largo do Machado.
Hoje, por volta das 15.30h na saída do Túnel Santa Bárbara em direção à  Rua das Laranjeiras um quarteto animado conversava, e pelo tom dos sorrisos o papo era bastante interessante.
Na Rua Uruguaiana, centro do RJ, guardas municipais e camelôs que vendem DVds piratas convivem pacificamente lado a lado.
Socorro!!!!!
A cada dia nosso dinheiro rola ladeira abaixo.
Lembrei que eles servem para MULTAR. Orientar o trânsito jamais.

Joanna Marcenal e o esquecimento da imprensa brasileira


Milton Cunha,
Impecável sua coluna no “O Dia” de ontem.
Lamento somente não ter citado o Caso Joanna Marcenal que se arrasta há quase dois anos  no vai e vem da Justiça e no esquecimento de grande parte da imprensa brasileira.

Fadas, reis e madrastas aqui e agora

Os contos de fadas nos revelam todo o mistério da alma humana. A psicanálise interpreta esses personagens como metáforas, símbolos de fases e acontecimentos importantes na vida de todos nós. Chapeuzinho Vermelho, por exemplo, seria o grande momento em que a menina vira mocinha (sangue, menstruação, cor vermelha). E o desejo sexual da menina tem no caçador o grande objeto.

Mas Branca de Neve é a maior de todas as histórias, porque primeiro ela nos coloca de frente com o perigo que toda criança corre: o ódio de alguns adultos. E tem vindo de algumas madrastas os atos tresloucados que tanto nos comovem. Claro que tem madrasta que é melhor que mãe e mãe que é pior que madrasta. Mas não é dessas que estamos tratando aqui. E segundo: a criança pode ser interpretada pelo algoz como prova de que existe amor verdadeiro, e isso ser insuportável para o doente que a matará. Por exemplo: no caso Nardoni, a menina Isabela era amadíssima pela mãe e, em sua doçura, despertou a cruela que não podia conviver com o fruto de um amor. Era preciso destruí-la e, mais que isso, convencer o pai de que isso era imprescindível.

Tem também a amante que sequestrou a filha do casamento de seu homem, levou para o motel e matou a menina. Essa deve ter sacado que feriria mais o pai matando a filha que matando a esposa. E, mais que isso, achou que destruiria o casamento deles de forma definitiva, colocando entre eles o cadáver de sua filhinha. Nunca menosprezem essas doidas. Elas raciocinam para o golpe ser certeiro.

E agora o pequeno negrinho da têmpora roxa, da perna quebrada, dos olhinhos fechados em silêncio profundo de indagação: o que eu fiz? Por que eu? Pois o pequeno anjo todo amassado, que tanto resistiu até não mais poder, é ele quem de novo nos joga na cara a figura que nem os contos de fadas ousaram imaginar: o pai biológico, que, enredado pela madrasta, avança contra a carne de suas carnes, pedaços dele mesmo, para aniquilar, destruir, fazer perecer.

Madrastas não pariram, não fecundaram, não têm a relação misteriosa da maternidade e da paternidade, energia gigantesca que desperta a proteção do lobo e da leoa. Mais que isso: a criança é a prova de que pelo menos desse ato elas estão fora, que sobre aquilo elas não têm ingerência. Para mim, a incógnita ainda mais insondável de todas é o momento final em que os pais, convencidos por veneno ou feitiço que desconheço, avançam contra o sangue de seu sangue e matam a semente de beleza que plantaram. Não se quebra osso de um filho sem o punhal cravado no próprio peito.

Milton Cunha, O Dia 24-07-2012

terça-feira, 24 de julho de 2012

Intervalo doloroso


Intervalo doloroso

Tudo me cansa, mesmo o que não me cansa. A minha alegria é tão dolorosa como a minha dor.

Quem me dera ser uma criança pondo barcos de papel num tanque de quinta, como um dossel rústico de entrelaçamentos de parreira pondo xadrezes de luz e sombra verde nos reflexos sombrios da pouca água.

Entre mim e a vida há um vidro ténue. Por mais nitidamente que eu veja e compreenda a vida, eu não posso tocar.

Raciocinar a minha tristeza? Para quê, se o raciocínio é um esforço? E quem é triste não pode esforçar-se.
Nem mesmo abdico daqueles gestos banais da vida de que eu tanto quereria abdicar. Abdicar é um esforço, e eu não possuo o de alma com que esforçar-me.

Quantas vezes me punge o não ser o manobrante daquele carro, o cocheiro daquele trem! Qualquer banal Outro suposto cuja vida, por não ser minha, deliciosamente se me penetra de eu querê-la e se me penetra até de alheia!
Eu não teria o horror à vida como a uma Coisa. A noção da vida como um Todo não me esmagaria os ombros do pensamento.
Os meus sonhos são um refúgio estúpido, como um guarda-chuva contra um raio.
Sou tão inerte, tão pobrezinho, tão falho de gestos e de actos.

Por mais que por mim me embrenhe, todos os atalhos do meu sonho vão dar a clareiras de angústia.

Mesmo eu, o que sonha tanto, tenho intervalos em que o sonho me foge. Então as coisas aparecem-me nítidas. Esvai-se a névoa de que me cerco. E todas as arestas visíveis ferem a carne da minha alma. Todas as durezas olhadas me magoam o conhecê-las durezas. Todos os pesos visíveis de objectos me pesam a alma dentro.

 A minha vida é como se me batessem com ela.

Fernando Pessoa. O livro do desassossego, Fragmento 80

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Magia Negra



Magia negra era o Pelé jogando, Cartola compondo, Milton cantando. Magia negra é o poema de Castro Alves, o samba de Jovelina...
Magia negra é Djavan, Emicida, Mano Brow, Thalma de Freitas, Simonal. Magia negra é Drogba, Fela kuti, Jam. Magia negra é dona Edith recitando no Sarau da Cooperifa. Carolina de Jesus é pura magia negra. Garrincha tinhas 2 pernas mágicas e negras James Brow. Milton Santos é pura magia.
Não posso ouvir a palavra magia negra que me transformo num dragão.
Michael Jackson e Jordan é magia negra. Cafu, Milton Gonçalves, Dona Ivone Lara, Jeferson De, Robinho, Daiane dos Santos é magia negra.
Fabiana Cozza, Machado de Assis, James Baldwin, Alice Walker, Nelson Mandela, Tupac, isso é o que chamo de magia negra.
Magia negra é Malcon X. Martin Luther King, Mussum, Zumbi, João Antônio, Candeia e Paulinho da Viola. Usain Bolt, Elza Soares, Sarah Vaughan, Billy Holliday e Nina Simone é magia mais do que negra.
Eu faço magia negra quando danço Fundo de quintal e Bob Marley.
Cruz e Souza, Zózimo, Spike Lee, tudo é magia negra neles. Umoja, Espirito de Zumbi, Afro Koteban...
É mestre Bimba, é Vai-Vai é Mangueira todas as escolas transformando quartas-feira de cinza em alegria de primeira.
Magia negra é Sabotage, MV Bill, Anderson Silva e Solano trindade.
Pepetela, Ondjaki, Ana Paula Taveres, João Mello... Magia negra.
Magia negra são os brancos que são solidários na luta contra o racismo.
Magia negra é o RAP, O Samba, o Blues, o Rock, Hip Hop de Africabambaataa.
Magia negra é magia que não acaba mais.

É isso e mais um monte de coisa que é magia negra.

O resto é feitiço racista.

Sergio Vaz

Li no mural da minha amiga Patricia Sodré e não resisti em compartilhar aqui no Canteiros.
Viva a diversidade!!!!!!

domingo, 15 de julho de 2012

O julgamento do Pum e o Caso Joanna Marcenal


Recebi do amigo Sergio Affonso, por e-mail, o relato do Desembargador Paulo Rangel sobre a pior audiência de sua vida.
Durante a leitura pensei ser uma piada, mas ao ler a autoria fui pesquisar no google, encontrando a postagem aqui, inclusive com comentários do autor.
Se todos pensassem e agissem como o Desembargador o Caso Joanna Marcenal não se arrastaria por quase dois anos.
Enquanto a Justiça se preocupar com o pum alheio as torturas e os homicídios vão sendo jogados para debaixo do tapete.

Meu aplauso ao Desembargador Paulo Rangel.

A pior audiência da minha vida

A minha carreira de Promotor de Justiça foi pautada sempre pelo princípio da importância (inventei agora esse princípio), isto é, priorizava aquilo que realmente era significante diante da quantidade de fatos graves que ocorriam na Comarca em que trabalhava. Até porque eu era o único promotor da cidade e só havia um único juiz. Se nós fôssemos nos preocupar com furto de galinha do vizinho; briga no botequim de bêbado sem lesão grave e noivo que largou a noiva na porta da igreja nós não iríamos dar conta de tudo de mais importante que havia para fazer e como havia (crimes violentos, graves, como estupros, homicídios, roubos, etc).

Era simples. Não há outro meio de você conseguir fazer justiça se você não priorizar aquilo que, efetivamente, interessa à sociedade. Talvez esteja aí um dos males do Judiciário quando se trata de “emperramento da máquina judiciária”. Pois bem. O Procurador Geral de Justiça (Chefe do Ministério Público) da época me ligou e pediu para eu colaborar com uma colega da comarca vizinha que estava enrolada com os processos e audiências dela. Lá fui eu prestar solidariedade à colega. Cheguei, me identifiquei a ela (não a conhecia) e combinamos que eu ficaria com os processos criminais e ela faria as audiências e os processos cíveis. Foi quando ela pediu para, naquele dia, eu fazer as audiências, aproveitando que já estava ali. Tudo bem. Fui à sala de audiências e me sentei no lugar reservado aos membros do Ministério Público: ao lado direito do juiz.

E eis que veio a primeira audiência do dia: um crime de ato obsceno cuja lei diz:
Ato obsceno
Art. 233 – Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público:
Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa.

O detalhe era: qual foi o ato obsceno que o cidadão praticou para estar ali, sentado no banco dos réus? Para que o Estado movimentasse toda a sua estrutura burocrática para fazer valer a lei? Para que todo aquele dinheiro gasto com ar condicionado, luz, papel, salário do juiz, do promotor, do defensor, dos policiais que estão de plantão, dos oficiais de justiça e demais funcionários justificasse aquela audiência? Ele, literalmente, cometeu uma ventosidade intestinal em local público, ou em palavras mais populares, soltou um pum, dentro de uma agência bancária e o guarda de segurança que estava lá para tomar conta do patrimônio da empresa, incomodado, deu voz de prisão em flagrante ao cliente peidão porque entendeu que ele fez aquilo como forma de deboche da figura do segurança, de sua autoridade, ou seja, lá estava eu, assoberbado de trabalho na minha comarca, trabalhando com o princípio inventado agora da importância, tendo que fazer audiência por causa de um peidão e de um guarda que não tinha o que fazer. E mais grave ainda: de uma promotora e um juiz que acharam que isso fosse algo relevante que pudesse autorizar o Poder Judiciário a gastar rios de dinheiro com um processo para que aquele peidão, quando muito mal educado, pudesse ser punido nas “penas da lei”.

Ponderei com o juiz que aquilo não seria um problema do Direito Penal, mas sim, quando muito, de saúde, de educação, de urbanidade, enfim… Ponderei, ponderei, mas bom senso não se compra na esquina, nem na padaria, não é mesmo? Não se aprende na faculdade. Ou você tem, ou não tem. E nem o juiz, nem a promotora tinham ao permitir que um pum se transformasse num litígio a ser resolvido pelo Poder Judiciário.
Imagina se todo pum do mundo se transformasse num processo? O cheiro dos fóruns seria insuportável.
O problema é que a audiência foi feita e eu tive que ficar ali ouvindo tudo aquilo que, óbvio, passou a ser engraçado. Já que ali estava, eu iria me divertir. Aprendi a me divertir com as coisas que não tem mais jeito. Aquela era uma delas. Afinal o que não tem remédio, remediado está.
O réu era um homem simples, humilde, mas do tipo forte, do campo, mas com idade avançada, aproximadamente, uns 70 anos.
Eis a audiência:

Juiz – Consta aqui da denúncia oferecida pelo Ministério Público que o senhor no dia x, do mês e ano tal, a tantas horas, no bairro h, dentro da agência bancária Y, o senhor, com vontade livre e consciente de ultrajar o pudor público, praticou ventosidade intestinal, depois de olhar para o guarda de forma debochada, causando odor insuportável a todas as pessoas daquela agência bancária, fato, que, por si só, impediu que pessoas pudessem ficar na fila, passando o senhor a ser o primeiro da fila.
Esses fatos são verdadeiros?

Réu – Não entendi essa parte da ventosidade…. o que mesmo?

Juiz – Ventosidade intestinal.

Réu – Ah sim, ventosidade intestinal. Então, essa parte é que eu queria que o senhor me explicasse direitinho.

Juiz – Quem tem que me explicar aqui é o senhor que é réu. Não eu. Eu cobro explicações. E então.. São verdadeiros ou não os fatos?

O juiz se sentiu ameaçado em sua autoridade. Como se o réu estivesse desafiando o juiz e mandando ele se explicar. Não percebeu que, em verdade, o réu não estava entendendo nada do que ele estava dizendo.

Réu – O guarda estava lá, eu estava na agência, me lembro que ninguém mais ficou na fila, mas eu não roubei ventosidade de ninguém não senhor. Eu sou um homem honesto e trabalhador, doutor juiz “meretrício”.

Na altura da audiência eu já estava rindo por dentro porque era claro e óbvio que o homem por ser um homem simples ele não sabia o que era ventosidade intestinal e o juiz por pertencer a outra camada da sociedade não entendia algo óbvio: para o povo o que ele chamava de ventosidade intestinal aquele homem simples do povo chama de PEIDO. E mais: o juiz se ofendeu de ser chamado de meretrício. E continuou a audiência.

Juiz – Em primeiro lugar, eu não sou meretrício, mas sim meritíssimo. Em segundo, ninguém está dizendo que o senhor roubou no banco, mas que soltou uma ventosidade intestinal. O senhor está me entendendo?

Réu  -  Ahh, agora sim. Entendi sim. Pensei que o senhor estivesse me chamando de ladrão. Nunca roubei nada de ninguém. Sou trabalhador.
E puxou do bolso uma carteira de trabalho velha e amassada para fazer prova de trabalho.

Juiz – E então, são verdadeiros ou não esses fatos.

Réu – Quais fatos?

O juiz nervoso como que perdendo a paciência e alterando a voz repetiu.

Juiz – Esses que eu acabei de narrar para o senhor. O senhor não está me ouvindo?

Réu – To ouvindo sim, mas o senhor pode repetir, por favor. Eu não prestei bem atenção.

O juiz, visivelmente irritado, repetiu a leitura da denúncia e insistiu na tal da ventosidade intestinal, mas o réu não alcançava o que ele queria dizer. Resolvi ajudar, embora não devesse, pois não fui eu quem ofereci aquela denúncia estapafúrdia e descabida. Típica de quem não tinha o que fazer.

EU – Excelência, pela ordem. Permite uma observação?

O juiz educado, do tipo que soltou pipa no ventilador de casa e jogou bola de gude no tapete persa do seu apartamento, permitiu, prontamente, minha manifestação.

Juiz – Pois não, doutor promotor. Pode falar. À vontade.

Eu – É só para dizer para o réu que ventosidade intestinal é um peido. Ele não esta entendendo o significado da palavra técnica daquilo que todos nós fazemos: soltar um pum. É disso que a promotora que fez essa denúncia está acusando o senhor.
O juiz ficou constrangido com minhas palavras diretas e objetivas, mas deu aquele riso de canto de boca e reiterou o que eu disse e perguntou, de novo, ao réu se tudo aquilo era verdade e eis que veio a confissão.

Réu – Ahhh, agora sim que eu entendi o que o senhor “meretrício” quer dizer.

O juiz o interrompeu e corrigiu na hora.

Juiz – Meretrício não, meritíssimo.

Pensei comigo: o cara não sabe o que é um peido vai saber o que é um adjetivo (meritíssimo)? Não dá. É muita falta de sensibilidade, mas vamos fazer a audiência. Vamos ver onde isso vai parar. E continuou o juiz.

Juiz – Muito bem. Agora que o doutor Promotor já explicou para o senhor de que o senhor é acusado o que o senhor tem para me dizer sobre esses fatos? São verdadeiros ou não?

Juiz adora esse negócio de verdade real. Ele quer porque quer saber da verdade, sei lá do que.

Réu – Ué, só porque eu soltei um pum o senhor quer me condenar? Vai dizer que o meretrício nunca peidou? Que o Promotor nunca soltou um pum? Que a dona moça aí do seu lado nunca peidou? (ele se referia a secretária do juiz que naquela altura já estava peidando de tanto rir como todos os presentes à audiência).

O juiz, constrangido, pediu a ele que o respeitasse e as pessoas que ali estavam, mas ele insistiu em confessar seu crime.

Réu – Quando eu tentei entrar no banco o segurança pediu para eu abrir minha bolsa quando a porta giratória travou, eu abri. A porta continuou travada e ele pediu para eu levantar a minha blusa, eu levantei. A porta continuou travada. Ele pediu para eu tirar os sapatos eu tirei, mas a porta continuou travada. Aí ele pediu para eu tirar o cinto da calça, eu tirei, mas a porta não abriu. Por último, ele pediu para eu tirar todos os metais que tinha no bolso e a porta continuou não abrindo. O gerente veio e disse que ele podia abrir a porta, mas que ele me revistasse. Eu não sou bandido. Protestei e eles disseram que eu só entraria na agência se fosse revistado e aí eu fingi que deixaria só para poder entrar. Quando ele veio botar a mão em cima de mim me revistando, passando a mão pelo meu corpo, eu fiquei nervoso e, sem querer, soltei um pum na cara dele e ele ficou possesso de raiva e me prendeu. Por isso que estou aqui, mas não fiz de propósito e sim de nervoso. Passei mal com todo aquele constrangimento das pessoas ficarem me olhando como seu eu fosse um bandido e eu não sou. Sou um trabalhador. Peidão sim, mas trabalhador e honesto.

O réu prestou o depoimento constrangido e emocionado e o juiz encerrou o interrogatório. Olhei para o defensor público e percebi que o réu foi muito bem orientado. Tipo: “assume o que fez e joga o peido no ventilador. Conta toda a verdade”. O juiz quis passar a oitiva das testemunhas de acusação e eu alertei que estava satisfeito com a prova produzida até então. Em outras palavras: eu não iria ficar ali sentado ouvindo testemunhas falando sobre um cara peidão e um segurança maluco que não tinha o que fazer junto com um gerente despreparado que gosta de constranger os clientes e um juiz que gosta de ouvir sobre o peido alheio. Eu tinha mais o que fazer. Aliás, eu estava até com vontade de soltar um pum, mas precisava ir ao banheiro porque meu pum as vezes pesa e aí já viu, né?

No fundo eu já estava me solidarizando com o pum do réu, tamanho foi o abuso do segurança e do gerente e pior: por colocarem no banco dos réus um homem simples porque praticou uma ventosidade intestinal.

É o cúmulo da falta do que fazer e da burocracia forense, além da distorção do Direito Penal sendo usado como instrumento de coação moral. Nunca imaginei fazer uma audiência por causa de uma, como disse a denúncia, ventosidade intestinal. Até pum neste País está sendo tratado como crime com tanto bandido, corrupto, ladrão andando pelas ruas o judiciário parou para julgar um pum.

Resultado: pedi a absolvição do réu alegando que o fato não era crime, sob pena de termos que ser todos, processados, criminalmente, neste País, inclusive, o juiz que recebeu a denúncia e a promotora que a fez. O juiz, constrangido, absolveu o réu, mas ainda quis fazer discurso chamando a atenção dele, dizendo que não fazia aquilo em público, ou seja, ele é o único ser humano que está nas ruas e quando quer peidar vai em casa rápido, peida e volta para audiência, por exemplo.
É um cara politicamente correto. É o tipo do peidão covarde, ou seja, o que tem medo de peidar. Só peida no banheiro e se não tem banheiro ele se contorce, engole o peido, cruza as perninhas e continua a fazer o que estava fazendo como se nada tivesse acontecido. Afinal, juiz é juiz.

Moral da história: perdemos 3 horas do dia com um processo por causa de um peido. Se contar isso na Inglaterra, com certeza, a Rainha jamais irá acreditar porque ela também, mesmo sendo Rainha… Você sabe.

Rio de Janeiro, 10 de maio de 2012.
Paulo Rangel, Desembargador do Tribunal de Justica do Rio de Janeiro

sábado, 14 de julho de 2012

A Lelé da Cuca e Juarez Machado



Nos anos 70 a Lelé da Cuca, em Copacabana, era a boutique da moda e muitas vezes passei por lá para admirar as pinturas de Juarez Machado e as roupas “transadas” da época, embora nunca tenha podido comprar qualquer peça, pois os preços eram muito acima das minhas possibilidades financeiras. Mais tarde mudou-se para Ipanema.
Em 2006 quando da formatura da minha filha no Ensino Médio compramos o seu vestido lá, um clássico, usado há alguns meses em um casamento. Aquela roupa que nunca sai de moda, atemporal.
A sacola de papel desenhada por ninguém menos que Juarez Machado que guardei para transformá-la em um quadro.
Hoje achamos esse postal em nossos guardados e com saudade fui pesquisar a relação da Lelé da Cuca com a obra de Juarez Machado.
Eis seu relato:

“Em 1969, junto com o arquiteto e pintor Roberto Bastos Cruz, fazíamos a decoração da primeira moderna boutique do Rio de Janeiro, ou do Brasil, chamada Lelé da Cuca.
Lá não havia balcão e muito menos balconista. As roupas eram expostas em araras. A cliente se servia, escolhia o modelo, experimentava a roupa numa cabine, passava no caixa e ia embora. Na época, este era um conceito novo de comércio de roupas femininas.

Atualmente, a maioria das lojas no mundo funciona assim. Na Lelé da Cuca fizemos o seguinte: nas paredes e no teto, para não interferir com as cores das roupas, pintamos em preto e branco histórias em quadrinhos.
A loja ficava na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, no famoso bairro de Copacabana. Todos os dias, no final da tarde, eu saía da Praça General Osório, em Ipanema, reduto boêmio e intelectual, onde trabalhava como desenhista na renomada Oca, casa de arquitetura de interiores de Sérgio Rodrigues, e ia, de ônibus, para Copacabana, onde ficava até de madrugada pintando os intermináveis desenhos da Lelé da Cuca.

Esse era um momento difícil na minha vida. Muito trabalho, filhos pequenos, pouco dinheiro e dívidas mensais. Meu único pequeno prazer era, todo dia, descer do ônibus dois pontos antes da loja e entrar numa enorme livraria. Ficava por lá uma meia hora folheando os belos livros de capa dura antes de seguir até a obra que se arrastava por meses. A proprietária já estava furiosa, pois tinha pago adiantado. Eu estava à beira de um colapso, tentando manter a calma e, por isso, aumentava o ritmo de trabalho como uma terapia entorpecedora.

Numa noite, caí na cama exausto, com dores nas costas em função da posição em que ficava para fazer os desenhos do teto, com os olhos ardendo e completamente enjoado pelo forte odor dos solventes. Foi então que tive um sonho longo, claro, com começo, meio e fim, tudo muito real e bem definido.

Sonhava que descia do ônibus no mesmo lugar, entrava na livraria e folheava os livros de sempre. Numa estante havia um livro estranho, com a capa completamente em branco, sem título, autor ou editora, sem nenhum texto. Comecei a folhear página por página, e percebi que os desenhos foram feitos por mim e que contavam uma pequena e bem humorada história de um personagem que tenta sair dos limites de um quadrado.

Tomo consciência que estou dentro do meu próprio pesadelo e, sabendo que estou sonhando, começo a rever o livro e a decorar cada página para, quando acordasse, tomar nota das idéias e fazer o livro que tinha visto pronto em meu sonho.

Foi o que aconteceu. Duas semanas mais tarde todos os desenhos estavam prontos e o projeto era o de transformá-lo num desenho animado para o cinema. Seria perfeito, mas como não encontrei patrocínio nem parceiros, os desenhos voltaram para a gaveta.

Meses depois mostrei o projeto para um amigo, o escritor Leon Eliachar, para quem eu tinha acabado de fazer a capa de seu último livro " A mulher em flagrante". Ele se entusiasmou muito e me levou para a Editora Francisco Alves. Em 1970, “Limite” foi editado com sucesso de crítica e vendas, incluindo projetos internacionais, já que o livro não carecia de tradução.

Mudou a direção da editora, foi criada uma nova filosofia de trabalho, foram feitas contenções de despesas, e tudo foi arquivado e empoeirado pelo tempo.

Trinta anos depois, graças à AGIR Editora e à amizade de José de Paula Machado, conto de novo esta velha história vivida por mim e que é universal pois Limite fala da angústia de todos nós, de sermos prisioneiros de nossos próprios limites.

Em tempo: uma semana após o sonho, terminamos as pinturas da loja que veio a ser a boutique da moda nos anos 70/80. Mais tarde ela foi vendida e pintaram sobre os nossos desenhos. Nada foi preservado – hoje aqueles desenhos dariam uma bela história e um novo livro."

Juarez Machado ao lançar  “Limite”, livro sem texto que aborda a angústia de todos nós, de sermos prisioneiros de nossos próprios limites.

Fonte: Ediouro

Mais sobre Juarez Machado: aqui

quinta-feira, 12 de julho de 2012

O Castanheiro e a Súplica da Árvore ao Viandante


Castanheiros do Parque de Nossa Senhora dos Remédios, em Lamego.
Trata-se de dois castanheiros multiseculares, decrépitos, tendo o maior 9 m. de P.A.P, que segundo Taborda de Morais (1936) deve ter cerca de 900 anos, sendo um dos mais velhos do País. Esta árvore está considerada de interesse público, por Decreto publicado em 'Diário do Governo'. Foi assinalado por Sousa Pimentel no seu livro Árvores gigantes de Portugal, publicado em 1894, tendo já nessa altura 9 m. de P.A.P. Este castanheiro pertence à irmandade de Nossa Senhora dos Remédios.
Ernesto Góes,In Árvores Momumentais de Portugal, 1984


terça-feira, 10 de julho de 2012

Júri popular para os assassinos de Joanna Marcenal


“Talvez fosse bom que os titulares de altos postos da Justiça nunca se esquecessem de que são juízes, cônscios da sacralidade da missão. O que os faz respeitáveis não são as reverências, excelências ou eminências, mas a retidão das decisões que profiram.”
João Baptista Herkenhoff, In Questões angustiantes de Justiça.

A sociedade respira aliviada.

Homicídio Qualificado (Art. 121, § 2º - CP)

Crimes de Tortura (Art. 1º - Lei 9.455/97)

Crime Continuado (Art. 71 - CP)

E TRIBUNAL DO JÚRI!!! 


"Eles são grandes, porque nós estamos de joelhos." Tolstoi
 Nunca estivemos de joelhos diante das ameaças, carteiradas e afins.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

A sociedade clama por Juri Popular no Caso Joanna Marcenal


3ª feira, 10 de Julho de 2012, será julgado o Caso Joanna Marcenal que se arrasta há quase dois anos.
O relator do processo, Desembargador Dr. José Muiños Piñeiro Filho, decidirá se o casal, pai e madrasta da menina vão a júri popular.
O caso comoveu e comove o Brasil inteiro sem que nós, pobres mortais, consigamos entender como o pai torturador confesso continua dando expediente no Tribunal de Justiça.
Dr. José Muiños Piñeiro Filho , precisamos voltar a acreditar que a faixa que cobre os olhos de Têmis – Símbolo da Justiça – signifique realmente a imparcialidade.

Processo No: 0048175-40.2011.8.19.0000

TJ/RJ - 9/7/2012 10:26 - Segunda Instância - Autuado em 14/9/2011


Classe:                      MANDADO DE SEGURANCA
Assunto:    Homicídio Qualificado (Art. 121, § 2º - CP)

Crimes de Tortura (Art. 1º - Lei 9.455/97)

Crime Continuado (Art. 71 - Cp)

  
Órgão Julgador:        SEGUNDA CAMARA CRIMINAL
Relator:                     DES. JOSE MUINOS PINEIRO FILHO
Processo originário:  0336128-89.2010.8.19.0001
. CAPITAL 3 VARA CRIMINAL
  
FASE ATUAL:            Publicação Pauta de julgamento ID: 1368922 Pág. 134
Data do Movimento: 06/07/2012 00:00
Complemento 1:       Pauta de julgamento
Local Responsável:   DGJUR - SECRETARIA DA 2 CAMARA CRIMINAL
Data de Publicação:  06/07/2012
Data da Sessão:       10/07/2012 13:01
Nro do Expediente:   PAUTA/2012.000043
ID no DJE:                 1368922

  

Leia também: 
 













quarta-feira, 4 de julho de 2012

O desafio de ser professor


O DESAFIO DE SER PROFESSOR
- O Caos na Educação e no Ensino -  
Nilson Calasans *
Raul Robson Sippel **

Houve um tempo em que a pessoa centrada, ponderada, atenciosa, paciente, disposta a dar-se incondicionalmente a outrem e a uma causa nobre e justa, a fim de estudar e aprender ao longo da vida, buscava ser professor ou professora.
Nesse tempo, ser professor era algo de uma ordem totêmica, tamanha importância. O professor tinha o estatuto de um pai, de um padrinho, de um tio querido, de alguém a quem se devia respeito. Mais do que isso, presteza e solicitude. Consideração. Carinho até. Nessa época, os pais educavam, iniciavam seus filhos na trilha da cidadania, preparando-os para o ingresso em uma comunidade escolar, onde se desenvolveriam sob diversos aspectos. Havia um Maternal, um Jardim da Infância, que davam suporte à família no sentido de ajudá-la a constituir seu rebento, preparando-o para o ingresso no universo do aprendizado disciplinar e de conteúdos específicos. A dedicação e o empenho eram compromissos inerentes e tácitos dos alunos. O desenvolvimento e o progresso eram comemorados com gáudio e júbilo. Um bom aluno tornava-se referência no meio e na região e uma nota vermelha podia gerar grande constrangimento; um risco de reprovação era vergonhoso indício de anormalidade, a ser investigada.
Nesse Brasil, poucos ascendiam aos cursos superiores, pouquíssimos tinham acesso ao aprendizado de idiomas, os cursos de graduação eram raros, difíceis; uma pós-graduação, por vezes, requeria anos de preparação; não raramente, necessidade de cursá-la no exterior. Professores universitários eram semideuses e, até hoje, há uma enorme mística em torno da figura do catedrático, do responsável pela cátedra; tudo isso muito antes das “cadeiras” terem sido substituídas por disciplinas.
Obviamente, não se deseja um retrocesso no tempo. O mundo mudou, o país mudou, tudo se transforma. A vida tornou-se muito difícil para todos. Hoje, milhões são pais levianamente, pela liberação dos costumes; a escola não tem como fazer maternagem e, para não ficarem nas ruas, as crianças são levadas à escola. Não há necessariamente desejo ou intenção ou compromisso de se aprender. E nessa escola, os professores precisam fazer a tal maternagem, fundar cidadãos, educar, ensinar, corrigir provas e trabalhos às centenas, fazer diários, preencher cadernetas, fazer cursos de aprimoramento presenciais e on line; tudo isso em troca de salários aviltantes, escorchantes, indignos, trabalhando sobre pressão, expostos a toda sorte de constrangimento, na medida em que não se pode reprovar, não se pode expulsar, não se pode revidar ofensas, apesar de agressões e até ameaças eventuais de morte. Isso existe e não há nessas palavras qualquer exagero. Institucionalizou-se a farsa, a fraude, a barbárie, o desgoverno e a impostura. O estado finge que paga; o professor finge que ensina, já que não há como sequer fazer valer sua autoridade em sala de aula, onde mal é ouvido; a direção tenta manter equilibrado todos esses vetores corrompidos e falidos, o que torna o ofício de lecionar um desafio inaquilatável, se não uma grande perda de tempo, de energia e de dinheiro público.
Não estamos conseguindo trabalhar. Não estamos conseguindo realizar um trabalho minimamente satisfatório e, mais cedo ou mais tarde, acabarão por chegar à conclusão que estamos a necessitar de assistência psicológica nas escolas, para alunos e professores; não obstante ser fundamental a presença, igualmente, se não policial, ao menos de segurança, que garanta a integridade física dos que padecem nesse turbilhão surreal, nesse inferno de Dante, penalizados, afinal, por terem descoberto e resolvido fazer valer suas vocações para o magistério. Padecem, principalmente, aqueles que ora estão a completar por volta de duas décadas de profissão, pois são estes que vivenciaram, em cheio, a transição; do paraíso – ou quase –, ao inferno!
É verdade que, em se fazendo vista grossa, toca-se o barco e empurra-se com a barriga. Porém, esse jamais será o caminho da vocação e da dignidade. Algo precisa ser pensado e feito, se desejam que existam professores responsáveis no futuro. Mesmo sabendo-se que, embora hoje, existam cursos de graduação em garagens, galpões, depósitos e buracos de metrô; pós-graduação por correspondência e uma nau de incompetentes vaidosos e inconsequentes dispostos a subempregos para ocupar esse honroso lugar de professor, não serão cafajestes e marginais, formados e pós-graduados em espeluncas, que ocuparão lugar de maior destaque e importância na sociedade; por mais insana e absurda que esta tenha se tornado.
*Escritor e cirurgião-dentista.
**Professor de Inglês e Mestre em Letras (UERJ)
Jornal O Impacto, Guararapes, 02 de Junho de 2012.