segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Peso do nada


"Sou formada por ausências,
Solitude, abstinências,
Que muitas vezes esmagam
Os gritos do meu silêncio!

Sou feita de mil querenças,

Anseios e transparências,

Que muitas vezes emergem

Com a voragem de um tufão!

Sou fruta verde-madura,

Um travo de fel-doçura,

Aguardente que se traga!

Sigo cerzindo essa teia,

Segurando em minhas veias

Todo o peso deste nada!"

Eliane Stoducto

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Pessoas...

Foto: Anna Clara Carvalho


Há pessoas que são como instituições.
Quando, de repente nos damos conta,
já levamos a multa para casa
com pagamento obrigatório
dali a dez dias.
Há pessoas com cara de guiché,
ar de recibo verde e
voz com tom de carimbo.
Há pessoas que são como eléctricos
e, quando damos por isso,
já elas correm sempre em frente
nos seus carris de todos os dias.
Há pessoas que são como barris de vinho;
não têm furos, não deixam escapar nada
e quando, num ápice, deixamos escapar um sorriso,
já elas estão cilindradas por medos e fobias,
que por muito que tentemos não conseguimos
descobrir quais são.
Há pessoas que trazem nos dentes impressos
como autocolantes senhas numeradas para
manter ordens que, mesmo desordenadas,
devem apitar no ecrã e parecer muito direitas.
Há pessoas que nos levam da vida como uma onda,
que vem só às vezes; pessoas que se deixam
embrulhar em laços e parecem
nunca mais querer endireitar-se.
Há pessoas que são como balcões
encerrados para balanço,
que cegam como nós dados nos
cordões dos sapatos,
que ardem como sumo de limão nos lábios
e que se evaporam como o fumo de um chá quente.
Há pessoas que lembram ovos cozidos e outras
que lembram músicas e letras.
Há pessoas que usam chapéus de palha
e soltam gargalhadas como se fossem
de rir as outras pessoas.
Há pessoas que são como feiras de carros usados;
pessoas que parecem de colar;
pessoas que lembram filetes de pescada
deitados em travessas de inox;
pessoas que são de decalcar.
Há pessoas que são tantas pessoas
que todas juntas parecem uma pessoa só.
Maria Amaro



sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Fluminense Poético....



Vídeo daqui: Capital Tricolor



quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Sótão

Foto: Anna Clara Carvalho


Por interstícios das malas abertas de quando éramos
crianças gritam as bocas sem nenhum eco
das bonecas.

Criaturas fictícias, escalpelizadas
e sem tintas, de ventre oco.

Mas o mortal lugar do coração está ainda a palpitar.
O bojo do peito de celulóide, como o meu,
pede-nos perdão pela saudade que nos devora.
Fiama Hassa Pais Brandão, In Cena Vivas

terça-feira, 3 de novembro de 2009

A intolerância de minissaia


(...) Para quem ainda não soube pela TV ou pela Internet, eis os fatos. No dia 22, uma estudante do curso de Turismo da Uniban, no campus de São Bernardo do Campos, foi à aula com um vestido curto cor-de-rosa, saltos altos e maquiagem. Ela sairia da aula para uma festa. Acabou sendo escoltada pela polícia para não ser linchada.

Não, falar em linchamento não é exagero. Faltou pouco – se houvesse pedras por ali...As imagens são impressionantes. “Puta, puta”, gritava uma multidão de pelo menos 300 pessoas, as vozes ecoando por todo o prédio. Ela teve de suportar ainda cusparadas, ameaças de estupro, tentativas de lhe fotografar os fundilhos. O vídeo foi parar no You Tube. No dia 29, chegou ao noticiário.

O episódio é revelador. Mostra o grau de barbárie e intolerância que se esconde sob o manto da falsa moralidade e da inveja., indica a qualidade da educação que estudantes universitários recebem e receberam na sala de aula e também em casa. Falta moral e ética. Aconteceu numa universidade. Não dá para usar a desculpa da ignorância. É a pura incapacidade de aceitar o diferente.

Da próxima vez que você reclamar da política, lembre que esse é o povo que elege nossos representantes. Se foram capazes de fazer isso, o que não fariam se tivessem poder? Esses são os futuros profissionais com os quais você terá de lidar. Se agiram assim em público, o que não fariam quando ninguém estivesse olhando? Moral e ética não são opcionais. Se o sujeito não tem numa circunstância, não vai ter em outra também.

Ah, mas a roupa dela era inapropriada, disseram alguns, inclusive professores. E daí? Ela não estava fazendo nada de ilegal. Não gostou? Fala com a própria menina, reclama com o reitor. Se não acontecer nada, fique no seu canto e cuide de sua vida. Simples assim. A isso se chama tolerância.

Fábio Santos, Jornal Rio Destak, edição nº 315, 3 de novembro de 2009.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Carta aos Mortos


Amigos, nada mudou em essência.
Os salários mal dão para os gastos,
As guerras não terminaram
E há vírus novos e terríveis,
Embora o avanço da medicina.
Volta e meia um vizinho
Tomba morto por questões de amor.
Há filmes interessantes, é verdade,
E como sempre, mulheres portentosas
Nos seduzem com suas bocas e pernas,
Mas em matéria de amor
Não inventamos nenhuma posição nova.
Alguns cosmonautas ficam no espaço
Seis meses ou mais, testando a engrenagem
E a solidão.
Em olimpíada há recordes previstos
E nos países, avanços e recuos sociais.
Mas nenhum pássaro mudou seu canto
Com a modernidade.
Reencenamos as mesmas tragédias gregas,
Relemos o Quixote, e a primavera
Chega pontualmente cada ano.
Alguns hábitos, rios e florestas
Se perderam.
Ninguém mais coloca cadeiras na calçada
Ou toma a fresca da tarde,
Mas temos máquinas velocíssimas
Que nos dispensam de pensar.
Sobre o desaparecimento dos dinossauros
E a formação das galáxias
Não avançamos nada.
Roupas vão e voltam com as modas.
Governos fortes caem, outros se levantam,
Países se dividem
E as formigas e abelhas continuam
Fiéis ao seu trabalho.
Nada mudou em essência.
Cantamos parabéns nas festas,
Discutimos futebol na esquina
Morremos em estúpidos desastres
E volta e meia
Um de nós olha o céu quando estrelado
Com o mesmo pasmo das cavernas.
E cada geração, insolente,
Continua a achar
Que vive no ápice da história.

Affonso Romano de Sant'Anna