dissolva dois tabletes de hipocrisia
numa porção de promessas não cumpridas.
acrescente uma xícara e meia
de descaso e oportunismo.
tempere com caixa dois à gosto
e não esqueça de rechear bem os bolsos
com bastante dinheiro público.
leve ao Congresso por tempo indeterminado,
e você terá todo o sabor
do político tipicamente brasileiro.
SENTIR FALTA - verbo intransitivo, invariável, singular. Sinônimo de falta de ar. Espectro, perseguição, obsessão. Mente perturbada pela presença constante de uma imagem, figura ou sensação. O mesmo que calafrio, sede, fome, transpiração. Falta de inspiração. Talvez um sim e um não, uma indecisão. Vontade de saber onde está, fazendo o quê e com quem. Ciúme, traição, dependência, necessidade, insônia, tesão. Conjuga bem com agonia, companhia, fantasia. Na primeira pessoa do plural não admite separação, rompimento. Risco de progressão, perigo, contaminação. Algo fatal, indenominável, fixação. Oxigênio, sem respiração. Pressão. Desespero. Início de paixão. Tempo que não passa. Pessoa que não aparece. Solidão.
"Nunca soube o que fazer
com os espaços que ficam
depois que alguém vai embora
uma dúvida insiste
e de tanto, o meu tentar desiste
de trocar a ausência
por qualquer coisa que fira menos:
nada para repor
nada para suprir
nada que realmente comportasse
o encanto de algo que ficou
para trás."
Cáh Morandi
Eu gosto dos venenos mais lentos
dos cafés mais amargos
das bebidas mais fortes
e tenho
apetites vorazes
uns rapazes
que vejo
passar
eu sonho
os delírios mais soltos
e os gestos mais loucos
que há
e sinto
uns desejos vulgares
navegar por uns mares
de lá
você pode me empurrar pro precipício
não me importo com isso
eu adoro voar.
Bruna Lombardi
Perdoar sempre me pareceu que era uma concessão a quem te ofendeu ou magoou. Mas vai além disso. Compreendo hoje que o perdão é fundamental para quem o concede e que, ao perdoar o outro, estamos principalmente perdoando a nós mesmos por termos errado, por termos nos equivocado na avaliação de uma pessoa ou não termos sido hábeis em determinadas situações de conflito. Perdoe. Perdoe-se.
Vem Caudaloso como um rio Que procura destino e foz Vem Assombroso como a luz Na hora final no ocaso Vem Inesperado como a chuva Em dia quente de estio. Serei calma e constante Permanente e amante Teu abrigo Tua certeza.
Sobre este dia precipitem as manhãs
E multipliquem os pássaros que cantam
E completo o Outono venha
Folhas e folhas aspergindo a última respiração das coisas sobre a minha
Respiração
E todos os meus anos juntos se festejem de uma só vez e eu morra
Agora
E sobre este dia todos os dias
Desçam
Como inúmeras águas sobre uma gota de sangue.
Os amigos não precisam estar ao lado para justificar a lealdade. Mandar relatórios do que estão fazendo para mostrar preocupação.
Os amigos são para toda a vida, ainda que não estejam conosco a vida inteira. Temos o costume de confundir amizade com onipresença e exigimos que as pessoas estejam sempre por perto, de plantão. Amizade não é dependência, submissão. Não se têm amigos para concordar na íntegra, mas para revisar os rascunhos e duvidar da letra. É independência, é respeito, é pedir uma opinião que não seja igual, uma experiência diferente.
Se o amigo desaparece por semanas, imediatamente se conclui que ele ficou chateado por alguma coisa. Diante de ausências mais longas e severas, cobramos telefonemas e visitas. E já se está falando mal dele por falta de notícias. Logo dele que nunca fez nada de errado!
O que é mais importante: a proximidade física ou afetiva? A proximidade física nem sempre é afetiva. Amigo pode ser um álibi ou cúmplice ou um bajulador ou um oportunista, ambicionando interesses que não o da simples troca e convívio.
Amigo mesmo demora a ser descoberto. É a permanência de seus conselhos e apoio que dirão de sua perenidade.
Amigo mesmo modifica a nossa história, chega a nos combater pela verdade e discernimento, supera condicionamentos e conluios. São capazes de brigar com a gente pelo nosso bem-estar.
Assim como há os amigos imaginários da infância, há os amigos invisíveis na maturidade. Aqueles que não estão perto podem estar dentro. Tenho amigos que nunca mais vi, que nunca mais recebi novidades e os valorizo com o frescor de um encontro recente. Não vou mentir a eles ¿vamos nos ligar?¿ num esbarrão de rua.
Muito menos dar desculpas esfarrapadas ao distanciamento.
Eles me ajudaram e não necessitam atualizar o cadastro para que sejam lembrados.
Ou passar em casa todo o final de semana e me convidar para ser padrinho de casamento, dos filhos, dos netos, dos bisnetos. Caso encontrá-los, haverá a empatia da primeira vez, a empatia da última vez, a empatia incessante de identificação. Amigos me salvaram da fossa, amigos me salvaram das drogas, amigos me salvaram da inveja, amigos me salvaram da precipitação, amigos me salvaram das brigas, amigos me salvaram de mim.
Os amigos são próprios de fases: da rua, do Ensino Fundamental, do Ensino Médio, da faculdade, do futebol, da poesia, do emprego, da dança, dos cursos de inglês, da capoeira, da academia, do blog. Significativos em cada etapa de formação. Não estão em nossa frente diariamente, mas estão em nossa personalidade, determinando, de modo imperceptível, as nossas atitudes.
Quantas juras foram feitas em bares a amigos, bêbados e trôpegos? Amigo é o que fica depois da ressaca. É glicose no sangue. A serenidade.
Da minha infância
retiro as fotografias da família
no luto diário,
os olhos invisíveis
condenando curiosidades,
o baú de preciosidades
(e traças devassas),
trancadas a cadeado,
os sonhos desenfreados,
a mística do susto,
os flagrantes,
evitados a custo
e por fim retiro-me do porão
com tudo o que continha minha imaginação
delirante.
Fica a vida.
Encontrei um verso fraturado,
caído na esquina da rua do lado.
Tinha se perdido de um coração saudoso
que passava por ali, desiludido.
Coloquei-o de pé, emendei seus pedaços,
refiz suas linhas, retoquei seus traços.
Afaguei suas dores como se fossem minhas.
Agora, novamente estruturado,
espero que ele não olhe para trás
e não misture sonhos com amargas
falências do passado;
que saiba enfeitar a estrela lá na frente
com fartos laços de rima colorida. ...
pois é para o futuro que caminham
todos os passos apressados desta vida.
"A vida, Senhor Visconde, é um pisca-pisca. A gente nasce, isto é, começa a piscar. Quem pára de piscar, chegou ao fim, morreu. Piscar é abrir e fechar os olhos - viver é isso. É um dorme e acorda, dorme e acorda, até que dorme e não acorda mais. [...] A vida das gentes neste mundo, senhor sabugo, é isso. Um rosário de piscados. Cada pisco é um dia.
Pisca e mama;
pisca e brinca;
pisca e estuda;
pisca e ama;
pisca e cria filhos;
pisca e geme os reumatismos;
por fim pisca pela última vez e morre.
- E depois que morre? - perguntou o Visconde.
- Depois que morre, vira hipótese. É ou não é? "
Monteiro Lobato, InMemórias da Emília
Tem pessoas que amamos
de amor tão intenso
que com seus gestos-palavras
vão fabricando nebulosas
dentro do corpo da gente.
Roseana Murray, In Poemas de Céu
Diz o meu nome
pronuncia-o
como se as sílabas te queimassem os lábios
sopra-o com a suavidade
de uma confidência
para que o escuro apeteça
para que se desatem os teus cabelos
para que aconteça
Porque eu cresço para ti
sou eu dentro de ti
que bebe a última gota
e te conduzo a um lugar
sem tempo nem contorno
Porque apenas para os teus olhos
sou gesto e cor
e dentro de ti
me recolho ferido
exausto dos combates
em que a mim próprio me venci
Porque a minha mão infatigável
procura o interior e o avesso
da aparência
porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem
e é urgente inventar
outra maneira de navegar
outro rumo outro pulsar
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativos
No húmido centro da noite
diz o meu nome
como se eu te fosse estranho
como se fosse intruso
para que eu mesmo me desconheça
e me sobressalte
quando suavemente
pronunciares o meu nome
“Qualquer história sobre a consciência é relativa à conectividade que existe entre todas as coisas do universo. Por isso, mesmo de forma inconsciente, alegramo-nos frente à natureza gentil dos atos de amor.”
Ana Beatriz Barbosa Silva, In Mentes Perigosas, o psicopata mora ao lado.
"Dizemos aos confusos, Conhece-te a ti mesmo, como se conhecer-se a si mesmo não fosse a quinta e mais difícil operação das aritméticas humanas, dizemos aos abúlicos, Querer é poder, como se as realidades bestiais do mundo não se divertissem a inverter todos os dias a posição relativa dos verbos, dizemos aos indecisos, Começar pelo princípio, como se esse princípio fosse a ponta sempre visível de um fio mal enrolado que bastasse puxar e ir puxando até chegarmos à outra ponta, a do fim, e como se, entre a primeira e a segunda, tivéssemos tido nas mãos uma linha lisa e contínua em que não havia sido preciso desfazer nós nem desenredar emaranhados, coisa impossível de acontecer na vida dos novelos, e, se uma outra frase de efeito é permitida, nos novelos da vida.".