Imagem daqui:
Hoje, dia do psicólogo, deixo minha eterna gratidão a Dra. Nise da Silveira, psiquiatra que olhava o ser humano antes de enxergar a doença.
Através de meu pequeno contato como estagiária, de sua obra, da leitura e releitura constante de suas lições de vida cresci como pessoa e profissional.
Compartilho com vocês uma das passagens de sua vida narradas no livro Nise: arqueóloga dos mares por Bernardo Carneiro Horta.
Aos 90 anos, foi coroada com cocar de cacique. Um xavante convidou-a para ser sua mãe
Idosa, Nise se comovia cada vez mais com suas histórias - não somente as antigas, mas também as daquela ocasião.
"Ontem, me aconteceu uma coisa: dois índios vieram me visitar. Fato curioso... Nós conversamos, almoçamos e tudo foi muito agradável. No dia seguinte, um deles foi embora. Mas, para minha surpresa, o outro retornou e me disse: 'Sonhei com minha avó e ela pediu para que eu voltasse aqui e convidasse a senhora para ser mãe xavante - minha mãe...' Nem é preciso dizer que fiquei impressionadíssima com tal convite!", contou a Dra.
Este índio se chama José Luís Tsereté. É cacique xavante e foi apresentado à Nise pela antropóloga May Waddington, amiga e participante do Grupo de Estudos C.G.Jung. O fato emocionou a psiquiatra, pois aquele índio de 45 anos de idade tocara num ponto especial: a maternidade. A Dra. não teve filhos... Como se não bastasse, o convite, por sincronicidade, lhe chegou no dia das mães. Então, o xavante já adulto, perante a anciã, perguntou em tom oficial: "A senhora aceita ser minha mãe?" Ela se comoveu. Aos noventa anos, era a primeira vez que alguém a chamava, tão diretamente, de mãe.
De pé, vestido de calças jeans, camiseta e cocar, José Luís esperava atentamente pela resposta. A mulher lhe disse: "Sim. Eu aceito. Mas quero saber quais são as obrigações de uma mãe xavante." Ele revelou: "Estar ao lado de uma pessoa que sofre, que está doente. Estar ao lado de um animal que sofre, que está doente. Amar, ajudar, curar."
"Ao fim da visita, o cacique me convidou para jantar numa estrela. Achei aquilo uma coisa linda...", comentou Nise. Tomaram-se amigos.
Sempre que vinha de sua tribo para o Rio de Janeiro, ele a visitava. Outro momento importante, na amizade da dama do inconsciente e de José Luís, foi quando o índio a presenteou com um cocar grande e vistoso, multicolorido. Na ocasião, o filho decidiu que ela não seria somente sua mãe, mas sim mãe da natureza. Ao receber o presente, deu-se uma cena desconcertante: o xavante, solenemente, colocou o cocar na cabeça da notável anciã, que disse sentir-se coroada. A Dra. conta: "Então, ele me explicou que a pena maior, a azul, representa o céu, pela cor e pela autoridade. Outra coisa: aquela que é mãe da natureza é também cacique. Sendo assim, eu fui graduada: agora, sou cacica da natureza..."
No final da visita, a senhora das imagens surpreendeu o filho adotivo: pediu asilo existencial ao povo xavante. Comentou que não sentia mais vontade de estar na civilização. Estava cada vez mais apegada aos animais. Desejava ir para a floresta... Ela prossegue: "Eu lhe confessei que estou cansada do mundo dos brancos. Aí, pedi: 'Me leve com você para a floresta dos Índios...’ O cacique me respondeu que gostaria de me levar, mas isso não é possível. Explicou-me que eu não agüentaria a viagem. É muito desgastante. Depois de ir até Brasília, de avião, é preciso pegar um outro avião e, chegando lá, tem muito chão pela frente - a estrada é de terra... Sim, eu entendi. Nasci neste mundo, e devo morrer aqui. Ontem, o José Luís voltou para a sua tribo."
Tempos depois do episódio, Nise fez um mea culpa diante dos membros do Grupo de Estudos, citando o xavante. Após chegar visivelmente abalada, na biblioteca, interrompeu a leitura e disparou:
"Peguem a ata da reunião de hoje e escrevam o que vou dizer agora: quando aceitei ser mãe xavante, o cacique José Luís repetiu que minha função é proteger todos os bichos, os vegetais e as criaturas. Eu aceitei. Pois bem: digam a ele que cometi um erro terrível. Falhei na minha função de ser mãe... Contem ao xavante o que aconteceu aqui. Faz algum tempo, um de meus gatos passou mal, adoeceu. Então, chamei o veterinário e dei pessoalmente o remédio pra ele. Às duas da madrugada, fraquejei e tive a impressão de que era um caso perdido. Desci para
o meu quarto, a pedido das acompanhantes - foi uma falha fatal da mãe xavante. O gato amanheceu morto. Agora, eu estou sofrendo com isso - sofro por ter abandonado o gato naquela madrugada. Sofro pela minha falha como mãe. Me arrependo e declaro a todos vocês. Isto é uma confissão pública. Escreveram tudo o que eu disse? Passe a ata pra cá - vou assinar embaixo."
Horta, Bernardo Carneiro in: Nise: arqueóloga dos mares
Veja também: Dia do Psicólogo
Um comentário:
Poderíamos chamá-la também de "Dra. Coração", pois sem dúvidas é um exemplo de vida e generosidade.
Qem dera se tivéssemos mais "DRas Nises" nesse mundo tão carente de afeto.
Parabéns à você pela belíssima homenagem. E parabéns também pelo seu dia. Um grande beijo no teu coração.
Postar um comentário