Desencontro (2)
No avesso das palavras
na contrária face
da minha solidão
eu te amei
e acariciei
o teu imperceptível crescer
como carne da lua
nos nocturnos lábios entreabertos
E amei-te sem saberes
amei-te sem o saber
amando de te procurar
amando de te inventar
No contorno do fogo
desenhei o teu rosto
e para te reconhecer
mudei de corpo
troquei de noites
juntei crepúsculo e alvorada
Para me acostumar
à tua intermitente ausência
ensinei às timbilas
a espera do silêncio
Julho 1981
in Raiz de Orvalho e Outros Poemas
Regresso
Voltar
a percorrer o inverso dos caminhos
reencontrar a palavra sem endereço
e contra o peito insuficiente
oferecer a lágrima que não nos defende
Recolher as marcas da minha lonjura
os sinais passageiros da loucura
e adormecer pela derradeira vez
nos lençóis em que anoitecemos
Reencontrar secretamente
o fugaz encanto
o perfeito momento
em que a carne tocou a fonte
e o sangue
fora de mim
procurou o seu coração primeiro
Bilene, Janeiro 1981
in Raiz de Orvalho e Outros Poemas
Confidência
Diz o meu nome
pronuncia-o
como se as sílabas te queimassem
[os lábios
sopra-o com a suavidade
de uma confidência
para que o escuro apeteça
para que se desatem os teus cabelos
para que aconteça
Porque eu cresço para ti
sou eu dentro de ti
que bebe a última gota
e te conduzo a um lugar
sem tempo nem contorno
Porque apenas para os teus olhos
sou gesto e cor
e dentro de ti
me recolho ferido
exausto dos combates
em que a mim próprio me venci
Porque a minha mão infatigável
procura o interior e o avesso
da aparência
porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem
e é urgente inventar
outra maneira de navegar
outro rumo outro pulsar
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativos
No húmido centro da noite
diz o meu nome
como se eu te fosse estranho
como se fosse intruso
para que eu mesmo me desconheça
e me sobressalte
quando suavemente
pronunciares o meu nome
Agosto 1979
in Raiz de Orvalho e Outros Poemas
Despedida
Aves marinhas soltaram-se dos teus dedos
quando anunciaste a despedida
e eu que habitara lugares secretos
e me embriagara com os teus gestos
recolhi as palavras vagabundas
como a tempestade que engole os barcos
porque ama os pescadores
Impossível separarmo-nos
agora que gravaste o teu sabor
sobre o súbito
e infinito parto do tempo
Por isso te toco
no grão e na erva
e na poeira da luz clara
a minha mão
reconhece a tua face de sal
E quando o mundo suspira
exausto
e desfila entre mercados e ruas
eu escuto sempre a voz que é tua
e que dos lábios
se desprende e se recolhe
Ali onde se embriagam
os corpos dos amantes
o te ventre aceitou a gota inicial
e um novo habitante
enroscou-se no segredo da tua carne
Nesse lugar
encostámos os nossos lábios
à funda circulação do sangue
porque me amavas
eu acreditava ser todos os homens
comandar o sentido das coisas
afogar poentes
despertar séculos à frente
e desenterrar o céu
para com ele cobrir
os teus seios de neve
Maio, 1977
in Raiz de Orvalho e Outros Poemas
Saudade
Magoa-me a saudade
do sobressalto dos corpos
ferindo-se de ternura
sói-me a distante lembrança
do teu vestido
caindo aos nossos pés
Magoa-me a saudade
do tempo em que te habitava
como o sal ocupa o mar
como a luz recolhendo-se
nas pupilas desatentas
Seja eu de novo a tua sombra, teu desejo,
tua noite sem remédio
tua virtude, tua carência
eu
que longe de ti sou fraco
eu
que já fui água, seiva vegetal
sou agora gota trémula, raiz exposta
Traz
de novo, meu amor,
a transparência da água
dá ocupação à minha ternura vadia
mergulha os teus dedos
no feitiço do meu peito
e espanta na gruta funda de mim
os animais que atormentam o meu sono
Outubro, 1979
in Raiz de Orvalho e Outros Poemas
Um comentário:
Desencontro. Quanta poesia!
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