terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

II - Raiz de Orvalho e Outros Poemas

Desencontro (2)

No avesso das palavras

na contrária face

da minha solidão

eu te amei

e acariciei

o teu imperceptível crescer

como carne da lua

nos nocturnos lábios entreabertos


E amei-te sem saberes

amei-te sem o saber

amando de te procurar

amando de te inventar


No contorno do fogo

desenhei o teu rosto

e para te reconhecer

mudei de corpo

troquei de noites

juntei crepúsculo e alvorada


Para me acostumar

à tua intermitente ausência

ensinei às timbilas

a espera do silêncio

Julho 1981

in Raiz de Orvalho e Outros Poemas


Regresso

Voltar

a percorrer o inverso dos caminhos

reencontrar a palavra sem endereço

e contra o peito insuficiente

oferecer a lágrima que não nos defende


Recolher as marcas da minha lonjura

os sinais passageiros da loucura

e adormecer pela derradeira vez

nos lençóis em que anoitecemos


Reencontrar secretamente

o fugaz encanto

o perfeito momento

em que a carne tocou a fonte

e o sangue

fora de mim

procurou o seu coração primeiro

Bilene, Janeiro 1981

in Raiz de Orvalho e Outros Poemas


Confidência

Diz o meu nome

pronuncia-o

como se as sílabas te queimassem

[os lábios

sopra-o com a suavidade

de uma confidência

para que o escuro apeteça

para que se desatem os teus cabelos

para que aconteça


Porque eu cresço para ti

sou eu dentro de ti

que bebe a última gota

e te conduzo a um lugar

sem tempo nem contorno


Porque apenas para os teus olhos

sou gesto e cor

e dentro de ti

me recolho ferido

exausto dos combates

em que a mim próprio me venci


Porque a minha mão infatigável

procura o interior e o avesso

da aparência

porque o tempo em que vivo

morre de ser ontem

e é urgente inventar

outra maneira de navegar

outro rumo outro pulsar

para dar esperança aos portos

que aguardam pensativos


No húmido centro da noite

diz o meu nome

como se eu te fosse estranho

como se fosse intruso

para que eu mesmo me desconheça

e me sobressalte

quando suavemente

pronunciares o meu nome

Agosto 1979

in Raiz de Orvalho e Outros Poemas


Despedida

Aves marinhas soltaram-se dos teus dedos

quando anunciaste a despedida

e eu que habitara lugares secretos

e me embriagara com os teus gestos

recolhi as palavras vagabundas

como a tempestade que engole os barcos

porque ama os pescadores


Impossível separarmo-nos

agora que gravaste o teu sabor

sobre o súbito

e infinito parto do tempo


Por isso te toco

no grão e na erva

e na poeira da luz clara

a minha mão

reconhece a tua face de sal


E quando o mundo suspira

exausto

e desfila entre mercados e ruas

eu escuto sempre a voz que é tua

e que dos lábios

se desprende e se recolhe


Ali onde se embriagam

os corpos dos amantes

o te ventre aceitou a gota inicial

e um novo habitante

enroscou-se no segredo da tua carne



Nesse lugar

encostámos os nossos lábios

à funda circulação do sangue

porque me amavas

eu acreditava ser todos os homens

comandar o sentido das coisas

afogar poentes

despertar séculos à frente

e desenterrar o céu

para com ele cobrir

os teus seios de neve

Maio, 1977

in Raiz de Orvalho e Outros Poemas


Saudade

Magoa-me a saudade

do sobressalto dos corpos

ferindo-se de ternura

sói-me a distante lembrança

do teu vestido

caindo aos nossos pés


Magoa-me a saudade

do tempo em que te habitava

como o sal ocupa o mar

como a luz recolhendo-se

nas pupilas desatentas


Seja eu de novo a tua sombra, teu desejo,

tua noite sem remédio

tua virtude, tua carência

eu

que longe de ti sou fraco

eu

que já fui água, seiva vegetal

sou agora gota trémula, raiz exposta


Traz

de novo, meu amor,

a transparência da água

dá ocupação à minha ternura vadia

mergulha os teus dedos

no feitiço do meu peito

e espanta na gruta funda de mim

os animais que atormentam o meu sono

Outubro, 1979

in Raiz de Orvalho e Outros Poemas

Um comentário:

Max disse...

Desencontro. Quanta poesia!