Foto: minha
Identidade
Preciso ser um outro
para ser eu mesmo
Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta
Sou pólen sem insecto
Sou areia sustentando
o sexo das árvores
Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro
No mundo que combato
morro
no mundo por que luto
nasço
Setembro, 1977
Mia Couto, in Raiz de Orvalho e Outros Poemas
Trajecto
Na vertigem do oceano
vagueio
sou ave que com o seu voo
se embriaga
Atravesso o reverso do céu
e num instante
eleva-se o meu coração sem peso
Como a desamparada pluma
subo ao reino da inconstância
para alojar a palavra inquieta
Na distância que percorro
eu mudo de ser
permuto de existência
surpreendo os homens
na sua secreta obscuridade
transito por quartos
de cortinados desbotados
e nas calcinadas mãos
que esculpiram o mundo
estremeço como quem desabotoa
a primeira nudez de uma mulher
Setembro, 1980
Mia Couto, in Raiz de Orvalho e Outros Poemas
Manhã
Estou
E num breve instante
Sinto tudo
Sinto-me tudo
Deito-me no meu corpo
E despeço-me de mim
Para me encontrar
No próximo olhar .
Ausento-me da morte
não quero nada
eu sou tudo
respiro-me até à exaustão .
Nada me alimenta
porque sou feito de todas as coisas
e adormeço onde tombam a luz
[e a poeira
A vida (ensinaram-me assim)
deve ser bebida
quando os lábios estiverem
[já mortos
Educadamente mortos
Novembro, 1979
Mia Couto, in Raiz de Orvalho e Outros Poemas
Palavra que desnudo
Entre a asa e o voo
nos trocámos
como a doçura e o fruto
nos unimos
num mesmo corpo de cinza
nos consumimos
e por isso
quando te recordo
percorro a imperceptível
fronteira do meu corpo
e sangro
nos teus flancos doloridos
Tu és o encoberto lado
da palavra que desnudo
Abril, 1981
Mia Couto, in Raiz de Orvalho e Outros Poemas
Primeira Palavra
Aproxima o teu coração
e inclina o teu sangue
para que eu recolha
os teus inacessíveis frutos
para que prove da tua água
e repouse na tua fronte
Debruça o teu rosto
sobre a terra sem vestígio
prepara o teu ventre
para a anunciada visita
até que nos lábios humedeça
a primeira palavra do teu corpo
Agosto 1980
Mia Couto, in Raiz de Orvalho e Outros Poemas
Desencontro (1)
Não ter morada
Habitar
Como um beijo
Entre os lábios
Fingir-se ausente
E suspirar
(o meu corpo
não se reconhece na espera)
percorrer com um só gesto
o teu corpo
e beber
toda a ternura
para refazer
o rosto
em que desapareces
o abraço
em que desobedeces
Outubro 1979
Mia Couto, in Raiz de Orvalho e Outros Poemas
2 comentários:
Aprendi a gostar desse autor com você.
Muito boa as poesias dele.
Adoro sua poesia, para mim é um encanto cada sua palavra:)
Postar um comentário