domingo, 21 de fevereiro de 2010

Raiz de Orvalho e Outros Poemas

Foto: minha

Identidade

Preciso ser um outro
para ser eu mesmo

Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta

Sou pólen sem insecto

Sou areia sustentando
o sexo das árvores

Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro

No mundo que combato

morro
no mundo por que luto

nasço

Setembro, 1977
Mia Couto, in Raiz de Orvalho e Outros Poemas


Trajecto

Na vertigem do oceano
vagueio
sou ave que com o seu voo
se embriaga
Atravesso o reverso do céu
e num instante
eleva-se o meu coração sem peso
Como a desamparada pluma
subo ao reino da inconstância
para alojar a palavra inquieta
Na distância que percorro
eu mudo de ser
permuto de existência
surpreendo os homens
na sua secreta obscuridade
transito por quartos
de cortinados desbotados
e nas calcinadas mãos
que esculpiram o mundo
estremeço como quem desabotoa
a primeira nudez de uma mulher

Setembro, 1980

Mia Couto, in Raiz de Orvalho e Outros Poemas


Manhã

Estou

E num breve instante

Sinto tudo

Sinto-me tudo

Deito-me no meu corpo

E despeço-me de mim

Para me encontrar

No próximo olhar .

Ausento-me da morte

não quero nada

eu sou tudo

respiro-me até à exaustão .

Nada me alimenta

porque sou feito de todas as coisas

e adormeço onde tombam a luz

[e a poeira

A vida (ensinaram-me assim)

deve ser bebida

quando os lábios estiverem

[já mortos

Educadamente mortos

Novembro, 1979


Mia Couto, in Raiz de Orvalho e Outros Poemas

Palavra que desnudo

Entre a asa e o voo

nos trocámos

como a doçura e o fruto

nos unimos

num mesmo corpo de cinza

nos consumimos

e por isso

quando te recordo

percorro a imperceptível

fronteira do meu corpo

e sangro

nos teus flancos doloridos

Tu és o encoberto lado

da palavra que desnudo

Abril, 1981

Mia Couto, in Raiz de Orvalho e Outros Poemas


Primeira Palavra

Aproxima o teu coração

e inclina o teu sangue

para que eu recolha

os teus inacessíveis frutos

para que prove da tua água

e repouse na tua fronte

Debruça o teu rosto

sobre a terra sem vestígio

prepara o teu ventre

para a anunciada visita

até que nos lábios humedeça

a primeira palavra do teu corpo

Agosto 1980

Mia Couto, in Raiz de Orvalho e Outros Poemas


Desencontro (1)

Não ter morada

Habitar

Como um beijo

Entre os lábios

Fingir-se ausente

E suspirar

(o meu corpo

não se reconhece na espera)

percorrer com um só gesto

o teu corpo

e beber

toda a ternura

para refazer

o rosto

em que desapareces

o abraço

em que desobedeces

Outubro 1979

Mia Couto, in Raiz de Orvalho e Outros Poemas

2 comentários:

Max disse...

Aprendi a gostar desse autor com você.
Muito boa as poesias dele.

Célia sousa disse...

Adoro sua poesia, para mim é um encanto cada sua palavra:)