O Rio rebelde
Começo pelas propostas defendidas pelo candidato.
Sobre a educação, o diagnóstico é preciso: "As escolas
públicas estão sem alma." Educação séria, em qualquer lugar do mundo,
requer horário integral e professores bem pagos, excluída a famigerada
"terceirização", que destrói os vínculos entre os funcionários e os
serviços. Em cada escola, autonomia pedagógica, observados parâmetros
democraticamente construídos.
A saúde pública também deve basear-se em médicos,
enfermeiros e auxiliares concursados, estáveis e decentemente remunerados,
encerrando-se a experiência das Organizações de Saúde/OS, uma privatização
mascarada, baseada na anarquia salarial e na falta de compromisso dos
profissionais com os centros de saúde e os hospitais: "Vamos fazer
concurso público, até porque o dinheiro que banca as OS é público e
muito." Quanto à habitação popular, critérios rigorosos na efetivação das
chamadas "remoções": "A política atual é irresponsável." Em
questão, uma "concepção de cidade". O que se quer? Entregar a cidade
aos negócios ou às pessoas? Dá para combinar os dois? Dá, mas numa "cidade
de direitos". Freixo cita exemplos concretos: "Em Londres, por lei,
metade das moradias da Vila Olímpica foi destinada à população de baixa renda.
A Vila dos Jogos Pan-Americanos na Barra foi toda jogada para o mercado
imobiliário."
Na área dos transportes públicos, "enfrentar o poder
das empresas de ônibus, reunidas na Federação dos Transportes
(FETRANSPOR)." Os consórcios funcionam como um cartel, impondo tarifas
escorchantes, recusando-se a aceitar o bilhete único, praticado, há anos, nas
grandes capitais do mundo. Em jogo, o "modelo rodoviário". O atual
tem custo alto, polui e inferniza a vida das pessoas. Por que não viabilizar o
transporte sobre trilhos? As vans assumiriam uma vocação "complementar",
organizando-se licitações individuais, para neutralizar o poder das milícias.
Finalmente, em relação à segurança, é falso dizer que se
trata de matéria exclusiva do estado. As milícias fundamentam seu poder em
atividades econômicas que se efetuam em territórios determinados. Ora, tais
atividades e territórios são - ou deveriam ser - regulados pela autoridade
municipal. Haveria um largo campo a ser aí explorado, sempre em parceria com os
governos estadual e federal, sem nenhuma conciliação com as milícias.
Selecionei cinco questões essenciais. É clara, em todas
elas, a vontade de mudança, respeitando-se os valores democráticos. A marca
rebelde contra o marasmo, um sistema exaurido que se repete e se rotiniza à
custa das grandes maiorias.
Mas os sinais de rebeldia aparecem principalmente na
mobilização e no incentivo à auto-organização das gentes. A recuperação da
militância gratuita e espontânea, motivada por valores - políticos e éticos.
Cada reunião é um comício. Cada comício surpreende pela afluência das pessoas.
Renasce o melhor da tradição democrática brasileira, viva e promissora, em
especial na primeira metade dos anos 1980, com destaque para a participação de
artistas, meio sumidos nos últimos anos dos embates políticos. Pois eles estão de
volta, generosos e solidários. Não seria esta uma indicação de tendências
profundas? A sintonia fina entre artista e sociedade?
O exercício de cidadania não vai morrer após a campanha
eleitoral. O candidato propõe - "eixo central da sua política" - a
construção de Conselhos de Políticas Públicas e a reanimação das associações de
bairros, destinados, em conjunto com os vereadores, a formular e a controlar a
aplicação das políticas e das leis, viabilizando uma "outra concepção de
governo", distinta do atual troca-troca de favores por votos, onde quase
sempre se encobrem interesses escusos. O Rio tem tradição rebelde.
Em 1968, houve aqui o movimento estudantil mais atuante, e
as maiores passeatas contra a ditadura. Na segunda metade dos anos 1970, a luta
pela anistia - ampla, geral e irrestrita. Nas primeiras eleições livres para
governadores, em 1982, a vitória de Leonel Brizola - "Brizola na
cabeça" - representou desafio à ordem vigente. Ao longo da campanha das
Diretas-já, o povo nas ruas contribuiu para consolidar o processo de transição
democrática. Na sequência, Fernando Gabeira quase foi eleito prefeito da cidade
contra ampla coligação de interesses conservadores. Em 1989, nas primeiras
eleições diretas para presidente, outros comícios - imensos - por Lula e
Brizola. A partir dos anos 1990, porém, no quadro da "administração das
coisas", as eleições perderam encanto, cada vez mais dominadas pelo
dinheiro e pelo marketeiros.
Não terá chegado a hora de mais uma virada? Retomando
tradições críticas que existem no tempo longo, enraizadas na cidade?
É verdade que outra candidatura fala de si mesma como
"um rio". Pode ser um rio qualquer. Mas o Rio rebelde, nas eleições
de outubro, além de um programa, tem nome e sobrenome: Marcelo Freixo.
Daniel Aarão Reis, O Globo, 18 de Setembro de 2012.
*Daniel Aarão Reis é
professor de História Contemporânea da UFF
Há um candidato que
usa o slogan “Somos um Rio”. Eu não faço parte desse Rio fictício, o Rio que
quero é o Rio rebelde com participação massiva da juventude como tenho visto
nos últimos meses.
Nenhum comentário:
Postar um comentário