quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Choque de quem?

Pintura: Fauto Perez

De acordo com o Novo Dicionário Aurélio encontramos as seguintes definições de choque [s.m]: 1.Embate, encontro de dois corpos em movimento ou de um corpo em movimento e um em repouso; 2.Embate, encontrão; 3.Querela violenta, briga; 4. Oposição, conflito.

Como fazer de uma ação política algo que suplante um mero 'choque', pontual e reversível? Como transformar um 'encontrão' em uma ferramenta de análise de algumas práticas coletivas? Quais problemas são, enfim, colocados para nós? "As pessoas não aprendem", talvez seja este o argumento. Mas como aprender se ainda utilizamos o 'choque' como metodologia de 'ensino'?

Como tornar o verbo ensinar, na política, um verbo transitivo, que de fato transite, um verbo compreendido dentro da trama histórico-social? E a pergunta que não podemos deixar de nos fazer: de que ordem está se demandando de nossos governantes? E que tipo de ordem está sendo proposta para nós?

Quem ensina, ensina algo. Quem ensina algo, ensina algo a alguém. Ou com alguém. E esse alguém ensina algo a quem ensina. Ou com quem ensina. Ensinar: verbo que transita. Nisto reside, em última análise, a grande importância política do ato de ensinar.

Como, enfim, colocar o problema da relação entre choques de ordem e aprendizagem coletiva? A educação permite ao homem descobrir-se como sujeito instaurador de sua experiência, implicando e responsabilizando-se com sua própria história, não simplesmente para conhecê-la, mas sobretudo produzir novos modos de ver, sentir e estar, portanto novas subjetividades.

Quando nos utilizamos da metodologia do choque e do aprendizado como ordem, observa-se nestas formalizações uma menção sempre presente à rejeição social, como que atribuindo ao fenômeno da 'falta de ordem' a idéia de algo maligno que deva ser exterminado das vistas da sociedade.

Toda prática atende (e produz) interesses políticos, econômicos e sociais. No entanto, de uma forma hegemônica, tem-se construído fazeres e dizeres sem questionar criticamente a que interesses políticos têm-se atendido, contribuindo assim para a legitimação de lugares de segregação, na medida em que se atesta através de instrumentos ‘de ordem’ que algumas práticas podem ser classificadas como sãs e, portanto, autorizadas à interação social, e outras, criminalizadas e recomendadas à reclusão.

O autoritarismo dos ‘pontos de vista’ funda-se no esvaziamento da implicação coletiva, restando o preconceito - remetido a uma questão pessoal - como eficácia política na manutenção e na desqualificação dos modos de existir.

Deste modo, endereçamos nossos choques àqueles que são a todo o momento entendidos como potencialmente perigosos, objetos de decisões políticas com o objetivo de assepsia àqueles que não eram e não são bem-vindos aos ideais ainda higienistas, presentes em nossos desejos de ordem no país. São políticas públicas e produções de subjetividades que propuseram e propõem intervenções para a eliminação destes, além de um fortalecimento do conceito de classes perigosas. Perigosas porque pobres, por desafiarem as políticas de controle social no meio urbano e, deste modo, mobilizam os mais diferentes setores da sociedade, como a família, a escola, o trabalho e a polícia, que indicam e orientam como todos deveriam se comportar, trabalhar, viver e morrer.

A modernidade exige cidades limpas, assépticas, onde a miséria – já que não pode mais ser escondida e/ou administrada – deve ser eliminada. Eliminação não por sua superação, mas pelo extermínio daqueles que a expõem incomodando os 'olhos, ouvidos e narizes' das classes mais abastadas. Encerro com João Cabral de Melo Neto, que em 'Morte e Vida Severina' nos pergunta: qual parte nos cabe nesse latifúndio?

Que lugar é esse que nós estamos ocupando? E que parte nos cabe em tudo isso? Antes de perguntarmos por que 'eles' não aprendem, poderíamos indagar por que 'nós' insistimos em tentar ensinar.

Pedro Paulo Gastalho de Bicalho, Professor da UFRJ e Doutor em Psicologia, JB, 04 de Fevereiro de 2009

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