Há algum tempo venho questionando determinadas decisões judiciais,
que me fazem desesperançosa na
imparcialidade da justiça.
Através de um amigo conheci alguns artigos do Professor João
Baptista Herkenhoff, magistrado aposentado, escritor, autor de 39 livros que
relata sua vivência jurídica com os olhos da ética, da generosidade e da
solidariedade. Acendeu em mim a esperança de um novo tempo.
Há alguns meses recebi por e-mail a decisão de um
desembargador que me deixou orgulhosa de ser contemporânea do Dr. José Luiz Palma Bisson.
Com referência ao caso em questão deixo para reflexão um
pensamento de Anatole France: “Os seres humanos estão sempre se matando
por causa da palavra, ao passo que, se tivessem compreendido o que elas queriam
dizer, ter-se-iam abraçado uns aos outros”.
Regina Coeli Carvalho
s.d
Desembargador do TJ/SP dá verdadeira aula de humanismo
Abaixo, a decisão do desembargador José Luiz Palma Bisson, do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferida num recurso de agravo de instrumento ajuizado contra despacho de um magistrado da cidade de Marília (SP), que negou os benefícios da justiça gratuita a um menor, filho de um marceneiro que morreu depois de atropelado por uma motocicleta.
O menor ajuizou uma ação de indenização contra o causador do acidente pedindo pensão de um salário-mínimo, mais danos morais decorrentes do falecimento do pai. Por não ter condições financeiras para pagar custas do processo, o menor pediu a gratuidade prevista na Lei 1060/50. O juiz, porém, negou-lhe o direito, argumentando que ele não apresentara prova de pobreza e, também, por estar representado no processo por "advogado particular".
Eis o relatório de desembargador:
"Que sorte a sua, menino, depois do azar de perder o
pai e ter sido vitimado por um filho de coração duro - ou sem ele , com o
indeferimento da gratuidade que você perseguia. Um dedo de sorte apenas, é
verdade, mas de sorte rara, que a loteria do distribuidor, perversa por
natureza, não costuma proporcionar. Fez caber a mim, com efeito, filho de
marceneiro como você, a missão de reavaliar a sua fortuna.
Aquela para mim maior, aliás, pelo meu pai - por Deus ainda
vivente e trabalhador - legada, olha-me agora. É uma plaina manual feita por
ele em pau-brasil, e que, aparentemente enfeitando o meu gabinete de trabalho,
a rigor diuturnamente avisa quem sou, de onde vim e com que cuidado extremo,
cuidado de artesão marceneiro, devo tratar as pessoas que me vêm a julgamento
disfarçados de autos processuais, tantos são os que nestes vêem apenas papel
repetido. É uma plaina que faz lembrar, sobretudo, meus caros dias de menino,
em que trabalhei com meu pai e tantos outros marceneiros como ele, derretendo
cola coqueiro - que nem existe mais - num velho fogão a gravetos que nunca
faltavam na oficina de marcenaria em que cresci; fogão cheiroso da queima da madeira
e do pão com manteiga, ali tostado no paralelo da faina menina.
Desde esses dias, que você menino desafortunadamente não
terá, eu hauri a certeza de que os marceneiros não são ricos não, de dinheiro
ao menos. São os marceneiros nesta Terra até hoje, menino saiba, como aquele
José, pai do menino Deus, que até o julgador singular deveria saber quem é.
O seu pai, menino, desses marceneiros era. Foi atropelado na
volta a pé do trabalho, o que, nesses dias em que qualquer um é motorizado, já
é sinal de pobreza bastante. E se tornava para descansar em casa posta no
Conjunto Habitacional Monte Castelo, no castelo somente em nome habitava, sinal
de pobreza exuberante.
Claro como a luz, igualmente, é o fato de que você, menino,
no pedir pensão de apenas um salário mínimo, pede não mais que para comer.
Logo, para quem quer e consegue ver nas aplainadas entrelinhas da sua vida, o
que você nela tem de sobra, menino, é a fome não saciada dos pobres.
Por conseguinte um deles é, e não deixa de sê-lo, saiba mais
uma vez, nem por estar contando com defensor particular. O ser filho de
marceneiro me ensinou inclusive a não ver nesse detalhe um sinal de riqueza do
cliente; antes e ao revés a nele divisar um gesto de pureza do causídico.
Tantas, deveras, foram as causas pobres que patrocinei quando advogava, em
troca quase sempre de nada, ou, em certa feita, como me lembro com a boca cheia
d?água, de um prato de alvas balas de coco, verba honorária em riqueza jamais
superada pelo lúdico e inesquecível prazer que me proporcionou.
Ademais, onde está escrito que pobre que se preza deve procurar
somente os advogados dos pobres para defendê-lo? Quiçá no livro grosso dos
preconceitos?
Enfim, menino, tudo isso é para dizer que você merece sim a
gratuidade, em razão da pobreza que, no seu caso, grita a plenos pulmões para
quem quer e consegue ouvir.
Fica este seu agravo de instrumento então provido; mantida
fica, agora com ares de definitiva, a antecipação da tutela recursal.
É como marceneiro que voto.
José Luiz Palma Bisson - relator sorteado"
Fonte: http://www.oab-rj.org.br/index.jsp?conteudo=15197
Um comentário:
Muitas vezes a insensibilidade juridica torna alguém sem-juizo. De Pè, bato palmas, incessantemente, para esse agravo digno de elogios. Leandro.
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