quarta-feira, 1 de outubro de 2008

A educação de berço: onde a coisa se perdeu?

Botero: família



A dúvida geral que paira na formação juvenil no mundo de hoje é a pergunta aí de cima. Poderíamos juntar milhares de respostas e, com a mais absoluta certeza, um excesso de culpa dos outros: todos os outros que não nós, pais e mães desta geração. Gostamos muito do nosso rostinho lindo e nos acreditamos bons. Alguns louvam os tapas que levaram do pai ou da mãe dizendo "no meu tempo..." e nos perguntamos "que tempo é esse?". São imagens conservadoras da formação dos humanos. Criança aprende por imitação, pelo exemplo e se hoje os jovens nos tiranizam foi porque ensinamos e permitimos isso. Bater em mulher é normal e se for empregada doméstica ou professora, mais normal ainda. Sempre agimos assim em casa e depois nos assustamos.

" O mundo está cheio de pais perplexos e, quando encontramos culturas onde a figura paterna ainda é fonte de interdição, dizemos que é uma cultura autoritária, ultrapassada e conservadora "

O mundo está cheio de pais perplexos e, quando encontramos culturas onde a figura paterna ainda é fonte de interdição, dizemos que é uma cultura autoritária, ultrapassada e conservadora. É preciso tomar cuidado com os extremos: criticamos um extremo sem admitir que estamos na outra ponta. Mas ficam aqui três questões que precisamos buscar respostas (ou atitudes). O debate está aberto.

1) Onde a coisa se perdeu, se é que se perdeu? Temos as maiores dificuldades em lidar com nossos meninos e meninas na medida que esquecemos o que fomos. Aprendemos a ser o que somos hoje por imitação. Imitamos nossos pais naquilo que eles têm de melhor e de pior. O ser humano é um imitador nato. Quando tem interesse em aprender, repete várias vezes uma ação até atingir o que considera uma perfeição. Tanto melhor se somos estimulados a isso. Lembro-me de D. Hélder Câmara, que respondia que a crise não era da juventude, mas dos velhos.

Desde pequenas as crianças aprendem o "não" como resposta. Enganamos as crianças na hora da comida dizendo-lhes que isso ou aquilo é gostoso. Criamos desde cedo uma cultura da mentira e seguimos dando este exemplo até a adolescência, quando afirmamos que sexo é pecado. (Pasmem: até hoje encontro pais com esta afirmação). Poderia citar vários exemplos, mas faça um exame no seu relacionamento com seus filhos e identifique, ao longo de sua vida, quantas vezes mentiu para eles ou perto deles. Como não os quer mentirosos hoje? Impossível: aprenderam a mentir, furar fila, desejar e consumir aquilo que não têm condições ou não podem consumir conosco, a geração mais velha.

Portanto, a coisa não se perdeu. Ela se manteve. As crianças, os adolescentes e jovens de hoje são apenas a continuidade de nossos atos. Seguem naturalmente os exemplos que nossa geração deu a eles diretamente. Ou por omissão, quando os abandonamos.

" Nas classes média e alta, foi a demissão voluntária dos pais que desmantelou as famílias. De uma forma ou de outra, criamos os menores abandonados em casa pela classe média e na rua pelos pobres "

2) Por que a coisa se perdeu, se é que se perdeu? Nas classes pobres perdeu-se na necessidade de sobreviver. Essa necessidade levou ao desmantelamento das famílias e ao abandono das crianças pelos pais numa tentativa sofrida de comprar a comida diária. Na classe média, pela necessidade das mães de colocarem-se na rua de forma honrada, como se a outra forma não o fosse. É bonito quando falamos da emancipação feminina e o quanto o trabalho contribuiu para isso. Esta beleza vale para a classe média, pois ela emancipa-se não pela necessidade biológica. Para os pobres, a necessidade de colocar mais alimentos na mesa levou pais e mães para o trabalho, distanciando-os dos filhos. Nas classes média e alta, foi a demissão voluntária dos pais que desmantelou as famílias. De uma forma ou de outra, criamos os menores abandonados em casa pela classe média e na rua pelos pobres. Qual o exemplo seguido por estes meninos e meninas abandonados?

Essa infância deseja e usa toda a tecnologia disponível no mundo sem a mediação dos pais. Aprende-se na rua muita coisa que vale a pena e que deve ser preservada. Mas aprende-se muita coisa ruim também. O que temos é uma nova cultura infanto-juvenil que não surgiu espontaneamente, mas foi sendo criada a partir de outros códigos morais e uma outra ética. A ética da rua: competitiva, selvagem, guerreira, machista. Os meninos e meninas que chegam à escola são hoje formados pela ausência paterna. Não há na formação a interdição paterna.

Naturalmente, esses jovens parecem inseminados artificialmente. Quando nascem da mãe, são amparados pela avó. Crescem cuidados pela tia ou irmã mais velha. Iniciam sua educação escolar nas mãos da professora (que chamou de tia na falta daquela). Ou seja: esta criança só vai ter um homem que vai interferir diretamente na sua formação se tiver sorte de ter um professor - em geral de educação física -, aos 11 anos de idade. Até então, cresceu sem esta interdição natural e necessária à sua formação.

" A atitude dos adultos deve sair da culpa do outro para a ação responsável. Não adianta sonhar com uma educação de berço: não existe mais berço, é preciso reconstruí-lo "

3) É possível retomar um velho projeto ou criar um novo para nossa sociedade? Sim. Sou um otimista. Um saudosista diria que devemos refazer a família como ela era. Não, a família nunca mais será a mesma. A família monoparental feminina ainda durará muito tempo. É preciso refazer o homem - o macho adulto branco de Caetano Veloso - para que ele compreenda o seu novo lugar na família, participando ativamente não apenas na concepção, mas na formação ética e moral do filho. E rever nossos meios de comunicação de massa para que invistam num novo modelo permeado por uma ética não-violenta e recheado de uma comunicabilidade educativa proporcionando lazer e prazer às novas gerações.

A atitude dos adultos deve sair da culpa do outro para a ação responsável. O que chamo de ação responsável? Estar presente no mundo, além de ser um ato de prazer é também de muita responsabilidade. Responsabilidade para com a nova geração. Falo de uma paternidade responsável que precisa ser construída na adolescência e juventude de hoje, com pena de se perder mais uma geração.

Não adianta sonhar com uma educação de berço: não existe mais berço, é preciso reconstruí-lo. É preciso reconstruir a infância enquanto direito e fato. Significa resgatar a capacidade de brincar e divertir de nossas crianças. Significa construir uma mídia que, acessada durante o dia, proporcione educação, lazer e aprendizagem significativa para as crianças e adolescentes.

Quanto ao poder público, apenas três sugestões: investir nas famílias de forma a exigir dos pais o seu efetivo papel na educação dos filhos, não os abandonando como vêm fazendo rotineiramente; investir no professor desde a primeira escola, dividindo a tarefa educativa com as professoras de forma a criar um mínimo de interdição e limites na vida das crianças; e, por último, criar espaços de convivência que caibam toda a família, e não apenas parte delas.

Dalvit Greiner ,Publicada em 14/03/2008 no Globo On line



2 comentários:

Anônimo disse...

Um excelente texto, analisando com certa profundidade o tema.

Há uma clara troca de valores nos dias de hoje. Penso que o melhor é tentarmos um ponto de equilibrio.

Anônimo disse...

Olá,

Cheguei aqui através do blog do Mário, e vim conhecer o seu canteiro, que é muito especial! Aqueles lugares agradáveis de se conhecer, gostei muito!

Quanto ao seu excelente texto, concordo com o que o Mário comentou, há uma visivel e até assustadora troca de valores, tenho conversado muito sobre isso lá na faculdade. Sinto que, a cada dia as coisas se tornam mais e mais difíceis, e como diz aquele música do Lulu Santos: " Assim caminha a humanidade"...

Volto, com certeza!

Beijo carinhoso, Cris