Recebi um e-mail de um amigo onde relatava a difícil tarefa de educar, de dar limites, de pais falarem a mesma linguagem, dos questionamentos de sua filha e as diferenças entre o “não” recebido na sua educação e o “não” questionado hoje pela nova geração.
Imediatamente lembrei-me deste texto que tantas vezes usei em sala de aula e embora tenha sido escrito há mais de 20 anos continua atual.
A Quem Educa...
Educa quem educará. E quem aprender a perder. Quem, ou cuja obra, permanecer muito depois do momento de educar. Educará quem for capaz de dar no presente, com decisão, coragem e sem culpas, tudo o que no futuro fizer lembrar - ainda que com dor mas se possível com muita alegria - o momento da educação.
Educar é perder sempre as batalhas do imediato. Menos o amor de quem percebe o quanto ele preside o gesto do educador. É perder qualquer pretensão do reconhecimento e saber que quando ele vier - se vier - já tempo não haverá para receber o agasalho de sua manifestação, nem como reparar as injustiças feitas, o silêncio, a falta do "muito obrigado". É perder porque é aceitar perdurar apenas na lembrança. É perder porque em qualquer sistema, em qualquer estrutura, em qualquer institucionalização de qualquer coisa sobre a face da terra, o verdadeiro educador estará ameaçando algo até mesmo tudo aquilo em que ele próprio acredita, porque o verdadeiro educador é aquele que acompanha as mutações da vida, dos tempos, dos comportamentos. É quem logo vê o abismo de imperfeições implícito no seu próprio ato de educar. Porque educar é educar-se a cada dia. E é ser capaz de eqüidistância de esquemas, sistemas ou fórmulas infalíveis e donas da verdade última das coisas.
Eu educo hoje com valores que recebi ontem para pessoas que são o amanhã. Os valores de ontem, os conheço. Os de hoje, percebo alguns. Dos de amanhã, não sei. Educo com os de ontem (os da minha formação)? Perderei os hojes e os amanhãs. Educo com os de hoje? Perderei o que havia de sólido nos de ontem e nada farei pelos de amanhã, que já serão outros. Educo com os de amanhã? Em nome do que? De adivinhações? Da minha precária maneira de conceber um amanha?
Se só uso os de ontem, não educo: condiciono. Se só uso os de hoje, não educo: complico. Se só uso os de amanhã, não educo: faço experiências à custa das crianças. Se uso os três, sofro. Mas educo.
Por isso educar é perder sem perder-se. Sempre. É ameaçar o estabelecido. Sempre. Mas é tudo isso sendo, também, integrar. Viver as perplexidades das mutações; conviver honradamente com angústias e incertezas; ir dormir cravado de dúvidas, mas ter sensibilidade para distinguir o que muda do que é apenas efêmero, o que é permanente do que é retardatário. É dormir assim e acordar no dia seguinte renovado pelo trabalho interior e poder devolver ao aluno, ao filho, a segurança, a fé, a confiança; formas éticas de comportamento, seu verdadeiro sentido de independência e de liberdade, seus deveres sociais consigo mesmo, com o próximo e com a sociedade, a parte que lhe cabe no esforço comum.
Educa quem educará. Quem for capaz de fundir ontens, hojes e amanhãs, transformando-os num presente onde o amor e o livre arbítrio sejam as bases. Educa quem educará porque capaz de dotar os seres dos elementos de interpretação dos vários 'presentes" que lhes surgirão repletos de "passados" e de "futuros".
O ser humano não é naturalmente bom nem é naturalmente mau. O ser humano é um feixe de emoções em conflitos, de poderes em confronto. Mas há alicerces básicos em seu comportamento, comuns a qualquer latitude ou longitude do terráqueo. Educa quem os fortalece, quem é capaz de dar proteínas, vigor e confiança ao lado humano do amor, mais forte que o do ódio, tanto que permite a vida do homem sobre a face da terra. E só quem educa transforma, por mais que as pessoas se iludam com o resto.
Educa a velha professora de quem nos lembramos, sabe Deus porque milênios depois num momento em que sua lembrança não tinha razões aparentes para vir à tona, como o velho tio, o amigo, o pai e mãe que voltam do passado com aquele olhar, aquela observação sobre a vida, à época julgados absurdo por nós. Educa aquele que só entendemos muitos anos depois e quando entendemos o espírito se liberta de antiga pressão, também chamada de remorso enrustido.
Educa o que nos exigiu forças que nos julgávamos desprovidos. Esforços de que nos acreditávamos incapazes. Confrontos conosco mesmos de que tanto fugimos e tantas desculpas menores encontramos para nos defrontar. Educa quem integra sempre e sempre pedaços de uma realidade eternamente mais ampla do que nós. E só quem educa, em qualquer nível ou atividade, merece viver integralmente as paradoxais intensidades de que é feita a vida.
Artur da Távola , In Mevitevendo.
*Os grifos são meus.
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