Recebi do amigo Sergio Affonso, por e-mail, o relato do
Desembargador Paulo Rangel sobre a pior audiência de sua vida.
Durante a leitura pensei ser uma piada, mas ao ler a autoria
fui pesquisar no google, encontrando a postagem aqui, inclusive com comentários
do autor.
Se todos pensassem e agissem como o Desembargador o Caso Joanna Marcenal não se arrastaria
por quase dois anos.
Enquanto a Justiça se preocupar com o pum alheio as torturas
e os homicídios vão sendo jogados para debaixo do tapete.
Meu aplauso ao Desembargador Paulo Rangel.
A pior audiência da
minha vida
A minha carreira de Promotor de Justiça foi pautada sempre
pelo princípio da importância (inventei agora esse princípio), isto é,
priorizava aquilo que realmente era significante diante da quantidade de fatos
graves que ocorriam na Comarca em que trabalhava. Até porque eu era o único
promotor da cidade e só havia um único juiz. Se nós fôssemos nos preocupar com
furto de galinha do vizinho; briga no botequim de bêbado sem lesão grave e
noivo que largou a noiva na porta da igreja nós não iríamos dar conta de tudo
de mais importante que havia para fazer e como havia (crimes violentos, graves,
como estupros, homicídios, roubos, etc).
Era simples. Não há outro meio de você conseguir fazer
justiça se você não priorizar aquilo que, efetivamente, interessa à sociedade.
Talvez esteja aí um dos males do Judiciário quando se trata de “emperramento da
máquina judiciária”. Pois bem. O Procurador Geral de Justiça (Chefe do
Ministério Público) da época me ligou e pediu para eu colaborar com uma colega
da comarca vizinha que estava enrolada com os processos e audiências dela. Lá
fui eu prestar solidariedade à colega. Cheguei, me identifiquei a ela (não a
conhecia) e combinamos que eu ficaria com os processos criminais e ela faria as
audiências e os processos cíveis. Foi quando ela pediu para, naquele dia, eu
fazer as audiências, aproveitando que já estava ali. Tudo bem. Fui à sala de
audiências e me sentei no lugar reservado aos membros do Ministério Público: ao
lado direito do juiz.
E eis que veio a primeira audiência do dia: um crime de ato
obsceno cuja lei diz:
Ato obsceno
Art. 233 – Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público:
Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa.
Ato obsceno
Art. 233 – Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público:
Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa.
O detalhe era: qual foi o ato obsceno que o cidadão praticou
para estar ali, sentado no banco dos réus? Para que o Estado movimentasse toda
a sua estrutura burocrática para fazer valer a lei? Para que todo aquele
dinheiro gasto com ar condicionado, luz, papel, salário do juiz, do promotor,
do defensor, dos policiais que estão de plantão, dos oficiais de justiça e
demais funcionários justificasse aquela audiência? Ele, literalmente, cometeu
uma ventosidade intestinal em local público, ou em palavras mais populares,
soltou um pum, dentro de uma agência bancária e o guarda de segurança que
estava lá para tomar conta do patrimônio da empresa, incomodado, deu voz de
prisão em flagrante ao cliente peidão porque entendeu que ele fez aquilo como
forma de deboche da figura do segurança, de sua autoridade, ou seja, lá estava
eu, assoberbado de trabalho na minha comarca, trabalhando com o princípio
inventado agora da importância, tendo que fazer audiência por causa de um
peidão e de um guarda que não tinha o que fazer. E mais grave ainda: de
uma promotora e um juiz que acharam que isso fosse algo relevante que pudesse
autorizar o Poder Judiciário a gastar rios de dinheiro com um processo para que
aquele peidão, quando muito mal educado, pudesse ser punido nas “penas da lei”.
Ponderei com o juiz que aquilo não seria um problema do
Direito Penal, mas sim, quando muito, de saúde, de educação, de urbanidade,
enfim… Ponderei, ponderei, mas bom senso não se compra na esquina, nem na
padaria, não é mesmo? Não se aprende na faculdade. Ou você tem, ou não tem. E
nem o juiz, nem a promotora tinham ao permitir que um pum se transformasse num
litígio a ser resolvido pelo Poder Judiciário.
Imagina se todo pum do mundo se transformasse num processo? O cheiro dos fóruns seria insuportável.
O problema é que a audiência foi feita e eu tive que ficar ali ouvindo tudo aquilo que, óbvio, passou a ser engraçado. Já que ali estava, eu iria me divertir. Aprendi a me divertir com as coisas que não tem mais jeito. Aquela era uma delas. Afinal o que não tem remédio, remediado está.
O réu era um homem simples, humilde, mas do tipo forte, do campo, mas com idade avançada, aproximadamente, uns 70 anos.
Eis a audiência:
Imagina se todo pum do mundo se transformasse num processo? O cheiro dos fóruns seria insuportável.
O problema é que a audiência foi feita e eu tive que ficar ali ouvindo tudo aquilo que, óbvio, passou a ser engraçado. Já que ali estava, eu iria me divertir. Aprendi a me divertir com as coisas que não tem mais jeito. Aquela era uma delas. Afinal o que não tem remédio, remediado está.
O réu era um homem simples, humilde, mas do tipo forte, do campo, mas com idade avançada, aproximadamente, uns 70 anos.
Eis a audiência:
Juiz – Consta aqui da denúncia oferecida pelo Ministério
Público que o senhor no dia x, do mês e ano tal, a tantas horas, no bairro h,
dentro da agência bancária Y, o senhor, com vontade livre e consciente de
ultrajar o pudor público, praticou ventosidade intestinal, depois de olhar para
o guarda de forma debochada, causando odor insuportável a todas as pessoas
daquela agência bancária, fato, que, por si só, impediu que pessoas pudessem
ficar na fila, passando o senhor a ser o primeiro da fila.
Esses fatos são verdadeiros?
Esses fatos são verdadeiros?
Réu – Não entendi essa parte da ventosidade…. o que mesmo?
Juiz – Ventosidade intestinal.
Réu – Ah sim, ventosidade intestinal. Então, essa parte é
que eu queria que o senhor me explicasse direitinho.
Juiz – Quem tem que me explicar aqui é o senhor que é réu.
Não eu. Eu cobro explicações. E então.. São verdadeiros ou não os fatos?
O juiz se sentiu ameaçado em sua autoridade. Como se o réu
estivesse desafiando o juiz e mandando ele se explicar. Não percebeu que, em
verdade, o réu não estava entendendo nada do que ele estava dizendo.
Réu – O guarda estava lá, eu estava na agência, me lembro
que ninguém mais ficou na fila, mas eu não roubei ventosidade de ninguém não
senhor. Eu sou um homem honesto e trabalhador, doutor juiz “meretrício”.
Na altura da audiência eu já estava rindo por dentro porque era claro e óbvio que o homem por ser um homem simples ele não sabia o que era ventosidade intestinal e o juiz por pertencer a outra camada da sociedade não entendia algo óbvio: para o povo o que ele chamava de ventosidade intestinal aquele homem simples do povo chama de PEIDO. E mais: o juiz se ofendeu de ser chamado de meretrício. E continuou a audiência.
Juiz – Em primeiro lugar, eu não sou meretrício, mas sim meritíssimo. Em segundo, ninguém está dizendo que o senhor roubou no banco, mas que soltou uma ventosidade intestinal. O senhor está me entendendo?
Réu - Ahh, agora sim. Entendi sim. Pensei que o senhor estivesse me chamando de ladrão. Nunca roubei nada de ninguém. Sou trabalhador.
E puxou do bolso uma carteira de trabalho velha e amassada para fazer prova de trabalho.
Juiz – E então, são verdadeiros ou não esses fatos.
Réu – Quais fatos?
O juiz nervoso como que perdendo a paciência e alterando a
voz repetiu.
Juiz – Esses que eu acabei de narrar para o senhor. O senhor
não está me ouvindo?
Réu – To ouvindo sim, mas o senhor pode repetir, por favor.
Eu não prestei bem atenção.
O juiz, visivelmente irritado, repetiu a leitura da denúncia
e insistiu na tal da ventosidade intestinal, mas o réu não alcançava o que ele
queria dizer. Resolvi ajudar, embora não devesse, pois não fui eu quem ofereci
aquela denúncia estapafúrdia e descabida. Típica de quem não tinha o que fazer.
EU – Excelência, pela ordem. Permite uma observação?
O juiz educado, do tipo que soltou pipa no ventilador de
casa e jogou bola de gude no tapete persa do seu apartamento, permitiu,
prontamente, minha manifestação.
Juiz – Pois não, doutor promotor. Pode falar. À vontade.
Eu – É só para dizer para o réu que ventosidade intestinal é
um peido. Ele não esta entendendo o significado da palavra técnica daquilo que
todos nós fazemos: soltar um pum. É disso que a promotora que fez essa denúncia
está acusando o senhor.
O juiz ficou constrangido com minhas palavras diretas e objetivas, mas deu aquele riso de canto de boca e reiterou o que eu disse e perguntou, de novo, ao réu se tudo aquilo era verdade e eis que veio a confissão.
O juiz ficou constrangido com minhas palavras diretas e objetivas, mas deu aquele riso de canto de boca e reiterou o que eu disse e perguntou, de novo, ao réu se tudo aquilo era verdade e eis que veio a confissão.
Réu – Ahhh, agora sim que eu entendi o que o senhor
“meretrício” quer dizer.
O juiz o interrompeu e corrigiu na hora.
Juiz – Meretrício não, meritíssimo.
Pensei comigo: o cara não sabe o que é um peido vai saber o
que é um adjetivo (meritíssimo)? Não dá. É muita falta de sensibilidade, mas
vamos fazer a audiência. Vamos ver onde isso vai parar. E continuou o juiz.
Juiz – Muito bem. Agora que o doutor Promotor já explicou
para o senhor de que o senhor é acusado o que o senhor tem para me dizer sobre
esses fatos? São verdadeiros ou não?
Juiz adora esse negócio de verdade real. Ele quer porque
quer saber da verdade, sei lá do que.
Réu – Ué, só porque eu soltei um pum o senhor quer me
condenar? Vai dizer que o meretrício nunca peidou? Que o Promotor nunca soltou
um pum? Que a dona moça aí do seu lado nunca peidou? (ele se referia a
secretária do juiz que naquela altura já estava peidando de tanto rir como
todos os presentes à audiência).
O juiz, constrangido, pediu a ele que o respeitasse e as pessoas que ali estavam, mas ele insistiu em confessar seu crime.
Réu – Quando eu tentei entrar no banco o segurança pediu
para eu abrir minha bolsa quando a porta giratória travou, eu abri. A porta
continuou travada e ele pediu para eu levantar a minha blusa, eu levantei. A
porta continuou travada. Ele pediu para eu tirar os sapatos eu tirei, mas a
porta continuou travada. Aí ele pediu para eu tirar o cinto da calça, eu tirei,
mas a porta não abriu. Por último, ele pediu para eu tirar todos os metais que
tinha no bolso e a porta continuou não abrindo. O gerente veio e disse que ele
podia abrir a porta, mas que ele me revistasse. Eu não sou bandido. Protestei e
eles disseram que eu só entraria na agência se fosse revistado e aí eu fingi
que deixaria só para poder entrar. Quando ele veio botar a mão em cima de mim
me revistando, passando a mão pelo meu corpo, eu fiquei nervoso e, sem querer,
soltei um pum na cara dele e ele ficou possesso de raiva e me prendeu. Por isso
que estou aqui, mas não fiz de propósito e sim de nervoso. Passei mal com todo
aquele constrangimento das pessoas ficarem me olhando como seu eu fosse um
bandido e eu não sou. Sou um trabalhador. Peidão sim, mas trabalhador e
honesto.
O réu prestou o depoimento constrangido e emocionado e o
juiz encerrou o interrogatório. Olhei para o defensor público e percebi que o
réu foi muito bem orientado. Tipo: “assume o que fez e joga o peido no
ventilador. Conta toda a verdade”. O juiz quis passar a oitiva das testemunhas
de acusação e eu alertei que estava satisfeito com a prova produzida até então.
Em outras palavras: eu não iria ficar ali sentado ouvindo testemunhas falando
sobre um cara peidão e um segurança maluco que não tinha o que fazer junto com
um gerente despreparado que gosta de constranger os clientes e um juiz que
gosta de ouvir sobre o peido alheio. Eu tinha mais o que fazer. Aliás, eu
estava até com vontade de soltar um pum, mas precisava ir ao banheiro porque
meu pum as vezes pesa e aí já viu, né?
No fundo eu já estava me solidarizando com o pum do réu,
tamanho foi o abuso do segurança e do gerente e pior: por colocarem no banco
dos réus um homem simples porque praticou uma ventosidade intestinal.
É o cúmulo da falta do que fazer e da burocracia forense,
além da distorção do Direito Penal sendo usado como instrumento de coação
moral. Nunca imaginei fazer uma audiência por causa de uma, como disse a
denúncia, ventosidade intestinal. Até pum neste País está sendo tratado como
crime com tanto bandido, corrupto, ladrão andando pelas ruas o judiciário parou
para julgar um pum.
Resultado: pedi a absolvição do réu alegando que o fato não
era crime, sob pena de termos que ser todos, processados, criminalmente, neste
País, inclusive, o juiz que recebeu a denúncia e a promotora que a fez. O juiz,
constrangido, absolveu o réu, mas ainda quis fazer discurso chamando a atenção
dele, dizendo que não fazia aquilo em público, ou seja, ele é o único ser
humano que está nas ruas e quando quer peidar vai em casa rápido, peida e volta
para audiência, por exemplo.
É um cara politicamente correto. É o tipo do peidão covarde, ou seja, o que tem medo de peidar. Só peida no banheiro e se não tem banheiro ele se contorce, engole o peido, cruza as perninhas e continua a fazer o que estava fazendo como se nada tivesse acontecido. Afinal, juiz é juiz.
É um cara politicamente correto. É o tipo do peidão covarde, ou seja, o que tem medo de peidar. Só peida no banheiro e se não tem banheiro ele se contorce, engole o peido, cruza as perninhas e continua a fazer o que estava fazendo como se nada tivesse acontecido. Afinal, juiz é juiz.
Moral da história: perdemos 3 horas do dia com um processo
por causa de um peido. Se contar isso na Inglaterra, com certeza, a Rainha
jamais irá acreditar porque ela também, mesmo sendo Rainha… Você sabe.
Rio de Janeiro, 10 de maio de 2012.
Paulo Rangel, Desembargador do Tribunal de Justica do Rio de
Janeiro
2 comentários:
Bom, muito bom.Mas é o retrato da nossa "justiça" e dos milhares de "merectrícios" e m"meretráicias"...q inflamados pela indignação pertinentes a sua empáfia, preocupa-se e julgam ais o coco do cachorro do bandido do que o assassinato q o mesmo cometeu. Banalização e distorção do q importa...enquanto isto monstros continuam soltos e a sociedade sujeitos a eles. Enquanto isto, as leis não protegem pessoas em frágeis condições e carentes de ajuda como meu caso e milhares de mães. Bj minha amiga (nem vou postar isto no Face, pq tem gente demais ali q só se preocupam com pum alheio e eu cansei)
Nosso judiciário precisa de GENTE como esse senhor.
Abraço.
Leila Matos
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