sábado, 31 de outubro de 2009

Ao Escrever...


Ao escrever a fome

com as palmas das mãos vazias

quando o buraco-estômago

expele famélicos desejos

há neste demente movimento

o sonho-esperança

de alguma migalha alimento.


Ao escrever o frio

com a ponta de meus ossos

e tendo no corpo o tremor

da dor e do desabrigo,

há neste tenso movimento

o calor-esperança

de alguma mísera veste.


Ao escrever a dor,

sozinha,

buscando a ressonância

do outro em mim

há neste constante movimento

a ilusão-esperança

da dupla sonância nossa.


Ao escrever a vida

no tubo de ensaio da partida

esmaecida nadando,

há neste inútil movimento

a enganosa-esperança

de laçar o tempo

e afagar o eterno.


Conceição Evaristo

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

O Verbo For


Vestibular de verdade era no meu tempo. Já estou chegando, ou já cheguei, à altura da vida em que tudo de bom era no meu tempo; meu e dos outros coroas. Acho inadmissível e mesmo chocante (no sentido antigo) um coroa não ser reacionário. Somos uma força histórica de grande valor. Se não agíssemos com o vigor necessário — evidentemente o condizente com a nossa condição provecta —, tudo sairia fora de controle, mais do que já está. O vestibular, é claro, jamais voltará ao que era outrora e talvez até desapareça, mas julgo necessário falar do antigo às novas gerações e lembrá-lo às minhas coevas (ao dicionário outra vez; domingo, dia de exercício).


O vestibular de Direito a que me submeti, na velha Faculdade de Direito da Bahia, tinha só quatro matérias: português, latim, francês ou inglês e sociologia, sendo que esta não constava dos currículos do curso secundário e a gente tinha que se virar por fora. Nada de cruzinhas, múltipla escolha ou matérias que não interessassem diretamente à carreira. Tudo escrito tão ruybarbosianamente quanto possível, com citações decoradas, preferivelmente. Os textos em latim eram As Catilinárias ou a Eneida, dos quais até hoje sei o comecinho.


Havia provas escritas e orais. A escrita já dava nervosismo, da oral muitos nunca se recuperaram inteiramente, pela vida afora. Tirava-se o ponto (sorteava-se o assunto) e partia-se para o martírio, insuperável por qualquer esporte radical desta juventude de hoje. A oral de latim era particularmente espetacular, porque se juntava uma multidão, para assistir à performance do saudoso mestre de Direito Romano Evandro Baltazar de Silveira. Franzino, sempre de colete e olhar vulpino (dicionário, dicionário), o mestre não perdoava.


— Traduza aí quousque tandem, Catilina, patientia nostra — dizia ele ao entanguido vestibulando.
— "Catilina, quanta paciência tens?" — retrucava o infeliz.


Era o bastante para o mestre se levantar, pôr as mãos sobre o estômago, olhar para a platéia como quem pede solidariedade e dar uma carreirinha em direção à porta da sala.


— Ai, minha barriga! — exclamava ele. — Deus, oh Deus, que fiz eu para ouvir tamanha asnice? Que pecados cometi, que ofensas Vos dirigi? Salvai essa alma de alimária. Senhor meu Pai!


Pode-se imaginar o resto do exame. Um amigo meu, que por sinal passou, chegou a enfiar, sem sentir, as unhas nas palmas das mãos, quando o mestre sentiu duas dores de barriga seguidas, na sua prova oral. Comigo, a coisa foi um pouco melhor, eu falava um latinzinho e ele me deu seis, nota do mais alto coturno em seu elenco.


O maior público das provas orais era o que já tinha ouvido falar alguma coisa do candidato e vinha vê-lo "dar um show". Eu dei show de português e inglês. O de português até que foi moleza, em certo sentido. O professor José Lima, de pé e tomando um cafezinho, me dirigiu as seguintes palavras aladas:


— Dou-lhe dez, se o senhor me disser qual é o sujeito da primeira oração do Hino Nacional!


— As margens plácidas — respondi instantaneamente e o mestre quase deixa cair a xícara.


— Por que não é indeterminado, "ouviram, etc."?


— Porque o "as" de "as margens plácidas" não é craseado. Quem ouviu foram as margens plácidas. É uma anástrofe, entre as muitas que existem no hino. "Nem teme quem te adora a própria morte": sujeito: "quem te adora." Se pusermos na ordem direta...


— Chega! — berrou ele. — Dez! Vá para a glória! A Bahia será sempre a Bahia!


Quis o irônico destino, uns anos mais tarde, que eu fosse professor da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia e me designassem para a banca de português, com prova oral e tudo. Eu tinha fama de professor carrasco, que até hoje considero injustíssima, e ficava muito incomodado com aqueles rapazes e moças pálidos e trêmulos diante de mim. Uma bela vez, chegou um sem o menor sinal de nervosismo, muito elegante, paletó, gravata e abotoaduras vistosas. A prova oral era bestíssima. Mandava-se o candidato ler umas dez linhas em voz alta (sim, porque alguns não sabiam ler) e depois se perguntava o que queria dizer uma palavra trivial ou outra, qual era o plural de outra e assim por diante. Esse mal sabia ler, mas não perdia a pose. Não acertou a responder nada. Então, eu, carrasco fictício, peguei no texto uma frase em que a palavra "for" tanto podia ser do verbo "ser" quanto do verbo "ir". Pronto, pensei. Se ele distinguir qual é o verbo, considero-o um gênio, dou quatro, ele passa e seja o que Deus quiser.


— Esse "for" aí, que verbo é esse?


Ele considerou a frase longamente, como se eu estivesse pedindo que resolvesse a quadratura do círculo, depois ajeitou as abotoaduras e me encarou sorridente.


— Verbo for.


— Verbo o quê?


— Verbo for.


— Conjugue aí o presente do indicativo desse verbo.


— Eu fonho, tu fões, ele fõe - recitou ele, impávido. — Nós fomos, vós fondes, eles fõem.


Não, dessa vez ele não passou. Mas, se perseverou, deve ter acabado passando e hoje há de estar num posto qualquer do Ministério da Administração ou na equipe econômica, ou ainda aposentado como marajá, ou as três coisas. Vestibular, no meu tempo, era muito mais divertido do que hoje e, nos dias que correm, devidamente diplomado, ele deve estar fondo para quebrar. Fões tu? Com quase toda a certeza, não. Eu tampouco fonho. Mas ele fõe.


João Ubaldo Ribeiro, In O Conselheiro Come.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Direitos imprescritíveis do leitor



No Dia Nacional do Livro, os direitos imprescritíveis do leitor formulados pelo escritor francês Daniel Pennac:


  1. O direito de não ler.
  2. O direito de pular páginas.
  3. O direito de não acabar de ler um livro.
  4. O direito de reler.
  5. O direito de ler qualquer coisa.
  6. O direito ao bovarismo.*
  7. O direito de ler em qualquer lugar.
  8. O direito de pinçar qualquer trecho do livro.
  9. O direito de ler em voz alta.
  10. O direito de se calar.


*bovarismo, s.m. 1. tendência que certos indivíduos apresentam de fugir à realidade e imaginar para si uma personalidade e condições de vida que não possuem, passando a agir como se as possuíssem (Dicionário Houaiss de língua portuguesa, 2004, 1ª reimpressão com alterações).


Fonte: Casa do Psicólogo

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Chamei, e a árvore entrou pela janela

Hoje, nada de guerra. Melhor falar de vida. De uma impressionante demonstração de amor que recebi de uma árvore. Isso mesmo, de uma árvore que fica em frente à minha casa e que, de tão amada que é por mim, está entrando pela minha janela para que eu possa acariciá-la. Não, leitor, não tomei chá de cogumelo nem LSD.


Na rua em que eu moro há várias árvores da mesma espécie, todas antigas e altas. Num belo dia, comecei a reparar naquela que fica em frente à minha casa. É incrível como não reparamos nas coisas mais lindas à nossa volta. Só temos olhos para canos de descarga, mendigos, buracos; só ouvimos buzinas, maledicências, tiros. Estamos cegos para as flores, o sol, a lua e as estrelas; surdos para o canto dos pássaros, para as lições de vida que nos pode dar qualquer criança.


Sem mais nem menos, comecei a prestar atenção naquela árvore, nos tons das folhas, no tronco maciço, no balançar dos galhos ao vento, no seu brilho sob o sol e na sua alegria muda ao se reavivar com a chuva. Um dia, tomei coragem e passei a elogia-la, dizer-lhe o quanto me faz bem e como gosto dela.


Aqui, é preciso abrir um parêntese. Há alguns anos, uma amiga me deu um livro chamado A profecia celestina. Não tive saco para chegar ao final, confesso, mas uma experiência relatada nele me impressionou muito. Aconteceu numa universidade holística, no Peru – em Lima, se não me engano. Fizeram o seguinte: pegaram um determinado número de sementes da mesma espécie, do mesmo tamanho, mesma safra. Construíram duas estufas exatamente iguais e independentes e plantaram metade dos grãozinhos em cada uma delas. Um dos espaços, ficava sempre vazio, ninguém ia lá. No outro, os cientistas da universidade envolvidos no estudo apareciam todos os dias para contemplar o desenvolvimento das plantas. E, mais do que isso, direcionavam a elas palavras de carinho, diziam-lhes que eram admiradas e queridas. Resultado: mesmo recebendo as mesmas quantidades de chuva, sol e nutrientes, as plantas que receberam atenção humana atingiram o dobro do tamanho das solitárias.


Agora volto à minha árvore de estimação para contar que ela é a mais frondosa entre todas as outras da rua. De vez em quando, eu desço e lhe faço um carinho – claro, depois de me certificar que não há nenhum idiota da objetividade olhando. Quando meu vizinho passou a motosserra nas duas irmãs dela, me apressei em certificá-la de que jamais faria aquilo com ela. Disse para que ficasse tranquila e que o máximo que poderia acontecer era o caminhão da prefeitura aparecer para podar seus galhos.


Mas, antes da poda incerta, eu tinha uma esperança. E, da janela – moro no terceiro andar – esticava a mão e chamava minha amiga para que viesse até mim e eu pudesse tocá-la. E não é que ela veio? Um dos seus galhos começou, dia a dia, a crescer na direção exata da minha janela. Contrariando o fototropismo, que faz os vegetais procurarem a luz, ela seguiu seus sentimentos e rumou para dentro do meu apartamento. Sua progressão foi tão incisiva, certeira e inédita que eu tive a certeza de que todas as plantas podem sentir nossa vibração e até mesmo entender quando lhes dizemos coisas boas. Da mesma forma, ficam tristes com nossa indiferença.


Na semana passada, esticando o braço na janela, pude, enfim, tocar suas pequenas folhas, acariciá-las, sentir aquela textura macia e levemente porosa, de uma leveza, uma delicadeza que contrasta com todo o peso da vida atribulada que levamos nas grandes cidades. Bombardeados por informação, competição, ansiedades e apreensões, não nos sobra tempo para prestar atenção nas coisas mais simples, que são também as mais fantásticas.


Marcelo Migliaccio

http://www.jblog.com.br/rioacima.php?itemid=16786

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Para minha irmã

Imagem: VirginiaBellatiFelizAniversário


Irmãos


O que seríamos de nós sem irmãos?
Não poderíamos ser os caçulas,
nem os mais velhos,
nem mesmo os "do meio".
Não poderíamos confidenciar sobre aquela paixão.
Não poderíamos brigar pelo pedaço maior do bolo.
Não teríamos em quem pôr a culpa pelo vaso quebrado.
Não teríamos com quem jogar bola ou brincar de boneca.
Não teríamos com quem conversar durante a madrugada.



O que seríamos de nós sem irmãos?
Tanta coisa que não poderíamos fazer.
Tanto tempo que perderíamos tentando entender.
Tanto amor não poderíamos compartilhar.



É por isso que devemos agradecer pela dádiva que a vida nos dá,
quando um irmãozinho nos chega pedindo colo e carinho,
ou quando o mais velho nos chama para viajar.
Quando temos aquele ombro amigo, depois da briga com o namorado.
Ou simplesmente, quando eles estão lá, nos olhando admirados.

Autoria desconhecida


Minha irmã,

Feliz aniversário!
Obrigada por ser a minha companheira.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Meu irmão, saudade de você!

Meu irmão Ronaldo, que partiu há 3 anos e que hoje faria aniversário, minha saudade!


“Tu deixaste de estar conosco para ser parte de cada um de nós.”

Jurandir Freire

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Clandestina Felicidade

Clarice Lispector, a menina ucraniana, descobriu no Recife a felicidade clandestina que fez dela uma das maiores escritoras brasileiras de todos os tempos.


quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Viagem nunca feita

Foto: minha


E assim escondo-me atrás da porta, para que a realidade, quando entra, me não veja. Escondo-me debaixo da mesa, donde, subitamente, prego sustos à possibilidade. De modo que desligo de mim, como aos dois braços de um amplexo, os dois grandes tédios que me apertam – o tédio de poder viver só o real, e o tédio de poder conceber só o possível.

Triunfo assim de toda a realidade. Castelos de areia, os meus triunfos?... De que coisa essencialmente divina são os castelos que não são de areia?

Como sabeis que, viajando assim, não me rejuvenesço obscuramente?

Infantil de absurdo, revivo a minha meninice, e brinco com as idéias das coisas como com soldados de chumbo, com os quais eu, quando menino, fazia coisas que embirravam com a idéia de soldado.

Ébrio de erros, perco-me por momentos de sentir-me viver.

Fernando Pessoa , In O Livro do Desassossego.



sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Nossa papética fragilidade...

Porque o amor, como a morte, também existe - e da mesma forma dissimulada. Por trás, inaparente. Mas tão poderoso que, da mesma forma que a morte - pois o amor também é uma espécie de morte (a morte da solidão, a morte do ego trancado, indivisível, furiosa e egoisticamente incomunicável) - nos desarma. O acontecer do amor e da morte desmascaram nossa patética fragilidade."


Caio Fernando Abreu, Em memória de Lílian, In Pequenas Epifanias

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Dia do Mestre

"Sou professor a favor da decência contra o despudor, a favor da liberdade contra o autoritarismo, da autoridade contra a silenciosidade, da democracia contra a ditadura de direita ou de esquerda.


Sou professor a favor da luta constante contra qualquer forma de discriminação, contra a dominação econômica dos indivíduos ou das classes sociais.


Sou professor contra a ordem capitalista vigente que inventou esta aberração: a miséria na fartura.


Sou professor a favor da esperança que me anima, apesar de tudo.


Sou professor contra o desengano que me consome e me imobiliza.



Sou professor a favor da boniteza de minha própria prática, boniteza que dela some se não cuido do saber que devo ensinar, se não brigo por este saber, se não luto pelas condições materiais necessárias sem as quais meu corpo, descuidado, corre o risco de se amofinar e de já não ser o testemunho que deve ser de lutador pertinaz que cansa mas não desiste.


Paulo Freire, In Pedagogia da Autonomia




Cada um de vocês deixou uma marquinha que me faz caminhar sempre na esperança de um mundo melhor!


quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Darcy Ribeiro

Tenho como hábito, desde a adolescência, de recortar e guardar reportagens, poemas, cartas, tudo que toca em meus sentimentos.

Remexendo numas pastas antigas deparei-me com esta belíssima carta de Darcy Ribeiro publicada pela Cora Ronái no caderno prosa e verso de O Globo em 1996.

A carta é longa mas vale a leitura saboreando cada parágrafo deste ser humano ímpar por quem sempre nutri um carinho especial.


"Cartas de amor são escritas não para dar notícias, não para contar nada, mas para que mãos separadas se toquem ao tocarem a mesma folha de papel." Rubens Alves



Carta inédita de Darcy Ribeiro à amiga Vera Brant: esboço de autobiografia sentimental


Brasília, hoje de junho,96. Vera, naveguei a noite toda pelos mares bravios da memória. Quase morri. Ondas me arrastaram nas areias do fundo do mar. Ondas leves, espumosas, me alçaram às alturas do céu.


Vivi, outra vez, vívido meus dissabores maiores: exílios, prisões, dores. Eles dariam para arrasar qualquer coração capaz de infelicidades. Mas revivi também, gozozo, meus prazeres e alegrias.


Nesta navegação celeste e abissal, um traço grosso, horizontal, cortava todas as ondas: Era você. Veruska. Você menina. Você moça feita. Você mulher. Você madura. Você agora. Sempre a meu lado, mão na minha mão. Às vezes, raras vezes, boca na boca, não mais. Pobres de nós. Coitadinho de mim.


A primeira imagem me devolve Verinha em uniforme de colégio, entre seus irmãos. Sobretudo no bonde cheio de meninas, aflita para me saudar com a mão, apesar dos pitos da freira. Ainda naqueles tempos está você, quase zarolha de ciúme me vendo cortejar sua irmã que nos veio, paulista, com seu chapelão de palha.


As ondas me levaram vida a fora. Angustiado, querendo suicidar, afoito, escrevendo romances. Pretensioso, filosofando. Depois fui exportado para São Paulo. Fui ser baiano no meio de tantos gringos. Lá me fizeram todo. Sobretudo a alma, que deu de querer cientificidades antropológicas. Nesta quadra você me vem já moça, seiúda, discretamente bunduda, mas sem coragem de si mesma, me dá a mão fugidia para retirar logo, discreta.


Viro antropólogo. Antes ainda de virar vejo você, invejoso, dando prum italiano. Assim ao menos me pareceu. Falava alto, fumava exibida e era linda e perigosa. Mandava no Ministro bestão, que só tinha olhos para sua cantora e ouvidos pros barrocos antigos. Você, entendidíssima dessas dissonâncias, mal me vê. Mas de esguelha, me deixava saber que eu existia, veemente, para você.


As ondas nos rolaram para Brasília nascente. Você era funcionária letra O, candelária. Eu brigava contra Deus e o mundo para fazer a Universidade dos meus sonhos, você olhava e ajudava, sempre me vendo, me destacando entre os homens todos como o não-irmão, queridíssimo, sem saber porquê.


Nasce a UNB de nossas mãos, querendo ser esplêndida, de um esplendor que só nós víamos. Nós dois e Rosa Maria. Logo se juntou gente em multidão pedindo carona em nosso sonho.


Lembra-se de meu desespero pedindo socorro a você para reger meus loucos? Sobretudo os matemáticos que não desse mundo. Precisavam, urgentemente, de um timoneiro que os fizesse baixar o chão do mundo. Veio você, pôs o barco sob as ondas navegando. Um dia teve que salvar um deles que decidira se suicidar porque a mulher o proibira de foder com uma arquiteta que ele experimentara e disse a ela que era muito melhor que ela. Sei que você se lembra.


Eu, desembargado de minha nau reitora, fui ser Ministro da Educação, você comigo no Gabinete, ordenando em arroubos para arrancar leite daquela burocracia vadia. Deu mais leite do que sabia.

Voltei com você à Universidade e logo fui chamado à minha aventura maior: passar o Brasil à limpo. Não vi você. Não via ninguém, só conduzia a barcaça enorme do destino nacional, atônito, lúcido de doer.


Soube de você, Verinha minha, carregada de filhos que não pariu mas queria como a leoa às suas crias. Fui-me embora para a ante-passárgada, meu primeiro exílio. Você ficou aqui namorando os exilados. Mais tarde foi me ver, me consolar de meus fracassos que eu repetiria outra vez e sempre na luta minha maior para que o Brasil, afinal dê certo.


A dor que mais me doeu nos primeiros anos de exílio foi ver a nossa Universidade de Brasília ser desmontada pela ditadura. Foi saber dos duzentos e quarenta professores que levei para lá, na diáspora mais dolorosa da história brasileira, terem que sair à procura de outra Universidade que os quisesse, porque sua dignidade não permitia permanecerem na Universidade humilhada. Tudo isso acompanhei por suas cartas. Lembro-me que, no desespero em que estava cheguei a escrever uma carta, que mandei a você me colocando à disposição dos carrascos para voltar preso ao Brasil se aceitassem esse preço para deixar livre nossa UNB. Desvarios meus.


Volto à Patrinha quando os meninos marchavam no Rio. Achava que se eles ofereciam seus jovens corações à bala, eu devia oferecer ao menos o meu fígado, porque já não tinha coração. Vivemos tempos tempestuosos. Jogados daqui prá lá como casquinhas de toletes de cana chupados. Fui preso. Recebi suas cartas doidas de não estar lá presa, comigo, na Fortaleza de Santa Cruz.


Parto para o meu segundo exílio pela porta que você me abriu, com Berta, obrigando Abgar a forçar jeitoso a ditadura para me deixar sair. Lá fui eu, para além dos Andes, para o mar grosso do outro lado do mundo, para Lima horrible, onde nunca chove jamais, mas cai cada mês em estado, menstrua. Tão forte é a maresia que transcende. Você lá foi Ter comigo, viu Lima arcaica e Lima nova, até fez um boneco na praia com a espuma do Pacífico, grossa como a neve.


Segui meus descaminhos, agora feito romancista, li para você meus primeiros escritos de Maíra . Berta nos olhava sempre suspeitosa. Tanta amizade parecia inverossímil, e era.


Rodei mundo e em Paris topei, tropecei com meu destino: câncer. Voltei ao Peru pedindo passagem para o Brasil. O câncer era meu cavalo. Pensava com ele voltar à Pátria, mal montado, é verdade, mas posto entre os meus. Meus amigos todos se juntaram, você no meio deles para que a ditadura consentisse que eu voltasse para morrer no Brasil. Custaram a consentir, achavam que mesmo canceroso eu era um perigo. Por fim autorizaram, quando o meu câncer já ameaçava ficar inoperável.


Você lá estava com o Mirza no carro do chefe de polícia para me arrancar do avião para a beneficência. Pedi, você se lembra? Pedi para ver a praia de Copacabana alargada e iluminada. Fui, vi, feliz. Depois fui morrer no Hospital.


Mas não era isso que eu queria. Jessy me arrancou fora um pulmão excedente. Fiquei com o que necessitava para aspirar os ares do mundo e expirar a morte que se aninhava no meu peito.


Você, Veruska, lá estava me trazendo flores e frutas. No hospital, para os policiais, você era minha irmã, com direito a estar que não davam aos meus amigos. Para a Berta não, você disputava com ela o doente dela, futuro morto dela de que só ela seria a viúva. Feias brigas vocês brigaram ali à beira da minha cama. Mas eu precisava de vocês duas. Brigavam tanto a ponto de assustar mamãe na casa do Max, para onde fui convalescer.


Voltei depois às andanças por casas alheias e depois, afinal, para a minha casa de Copacabana, a casa da Berta. Minha querida Berta que lá está hoje, morrendo de seu câncer. Eu mal podia andar, a cicatriz ainda visível eu mostrava a meus sobrinhos, filhos do Mário, dizendo que era uma mordida de tubarão. Eles acreditavam. Vivi tão cercado de policias que me incomodava mais que a convalescência. Diziam que estavam me protegendo contra os terroristas da própria ditadura. Mirza achava verossímil.


Tive de aceitar, obrigado, meu terceiro exílio e as novas tarefas de reformador de universidade e de namorador. Retorno ao Brasil brevemente para lançar o Processo Civilizatório e depois lançar Maíra. Você a meu lado orgulhosa de mim que era seu e dos livros que também eram seus. E não eram?


Retornando, por fim definitivamente, me meti outra vez na política, para seu desconsolo. Me elegi vice-governador. Criei o Sambódromo e muitas coisas mais. Entre elas meus quinhentos CIEPs, cuja agonia nas mãos do nosso governo me dói tanto quanto a da UNB. Você, orgulhosa de mim, mais orgulhosa agora, do que preocupada.


Alcanço a idade provecta e viro, como é próprio, Senador da República. Venho prá Brasília e você me dá casa. Primeiro, um apartamento alçado no telhado alto, belo, belo. Depois, na esplêndida casa zanínica em que morei. Tomando café de manhã, almoçando e jantando com você e passando à limpo, em longas conversas, toda a nossa vida, nos perguntando sobre tudo o que há neste mundo. Ainda temos muito que nos ver, nos olhar, nos beijar, nos falar. Veruska, minha amada namorada. Me dói muita saudade de nós.


Darcy Ribeiro

Fonte: Cora Ronái, O Globo - Prosa e verso. Sábado, 27 de julho de 1996